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De um gole só

Ideias centrais:

1- Modelo de Lemann exigia o equilíbrio ainda mais complexo que o financeiro, por se sustentar em dois pilares de difícil controle: pessoas excelentes e resultados excepcionais, nessa ordem.

2-  Cultura implantada na Brahma impunha atitude de dono. Profissionais talentosos, preparados e comprometidos com resultado tinham a possibilidade de se tornarem sócios do negócio, como no Banco Garantia.

3-  A principal contribuição da Interbrew na fusão seria o programa de gestão Voyager Plant Optimization, ou “guia para fazer as coisas visando as metas”. A AmBev entrava com as seguintes frentes: remuneração baseada na meritocracia e redução constante de custos.

4- O contrato com a Anheuser-Busch levou a Inbev novamente à posição de maior cervejaria do mundo. A resultante AB InBev tinha 120 mil empregados, faturamento de US$ 36,4 bilhões, produzindo 25% da cerveja mundial. O trio do Garantia estava no céu.

5-   A compra da SAB Miller pela AB InBev era coroação de um modelo construído e testado durante a gestão na cervejaria Brahma, nos anos 1990. Um modelo de capitalismo em esgotamento. Como será um modelo pós-pandemia? As apostas estão abertas.

Sobre a autora:

Ariane Abdallah é formada em jornalismo pela Cásper Líbero. Entre 2004 e 2015, trabalhou como repórter nas editoras Trip e Globo. Fundou o Atelier de Conteúdo, empresa especializada em comunicação.

Brahma, o começo de um império

A Brahma, cuja origem remonta ao fim do Segundo Reinado, seria a primeira marca brasileira de cerveja a vingar, graças a uma importante inovação. Fundada em 1888 pelo engenheiro suíço Joseph Villiger sob o nome de Manufactura de Cerveja Brahma, Villiger & Cia, a indústria foi pioneira – já sob o bastão de um segundo proprietário, o cervejeiro alemão George Maschke – a produzir a bebida pelo método de baixa fermentação, o que garantiria a perenidade da companhia no mercado brasileiro. 

Ao longo do século XX, a Brahma foi registrada com esse nome  no dia 12 de agosto de 1904, como consequência da fusão entre a Georg Maschke & Cia (que sucedeu a cervejaria original) e a Preiss Häussler & Cia Cervejaria Teutônia. Naquele tempo, a empresa tinha no caixa o capital de 5 mil contos e uma fábrica, localizada à Rua Marquês de Sapucaí, 142, no Rio de Janeiro.

Em 1972, a Brahma associou-se com a brasileira Fratelli Vita, fabricante de refrigerantes e cristais fundada em 1902. Com a parceria, a Brahma introduziu três marcas de bebidas sem álcool em seu portfólio: Sukita, Guaraná Fratelli e Gasosa Limão. Em 1980, foi realizada a aquisição do controle acionário das Cervejarias Skol-Caracu S/A, que passaram a se chamar Brahma, Administração, Investimentos e Participações Ltda.

Não se passaria muito tempo, e o controle da Brahma passaria às mãos de um grande investidor, que faria da aquisição da Brahma o núcleo de um império de cervejarias, de dimensões globais: a Ambev. Seu nome: Jorge Paulo Lemann.

Jorge Paulo é carioca, filho de mãe brasileira e pai suíço – o fundador da fabricante de laticínios Leco, abreviatura de Lemann & Company. Aos seis anos começou a jogar tênis no Country Club, tradicional clube da elite carioca, localizado na Avenida Vieira Souto, em Ipanema. 

Treinava diariamente, venceu diversos campeonatos infantis e, aos dezesseis anos, foi campeão brasileiro juvenil. Participou dos grand slams de Roland Garros e Wimbledon, em 1962. A exemplo de um primo seis anos mais velho, Alex Haegler, filho da irmã de sua mãe, Lemann decidiu estudar economia em Harvard. Naquela época, brasileiros eram raros no recinto.

Desde a experiência em Harvard, quando se aproximou de colegas e professores para aprender com eles, Lemann sabia se cercar de pessoas no mínimo tão boas quanto ele e que poderiam ser um caminho rápido, justo e divertido para o sucesso. Não estava preocupado em acumular patrimônio sozinho. Nutria o plano de trabalhar em sociedade.

Em agosto de 1971, junto com amigos e conhecidos do mercado, concretizou a compra da corretora Garantia por US$ 800 mil. Lemann e José Carlos Ramos e Silva ficaram com 51% da participação, divididos entre eles em partes iguais; Adolfo Gentil ficou com 39%; Guilherme Arinos Barroso Franco, com 10%. 

O modelo implementado por Lemann no Garantia criou não só um banco rentável, mas uma cultura corporativa inovadora para o Brasil da época – e ainda hoje referência nacional. Era um patrimônio que exigia o equilíbrio ainda mais complexo que o financeiro, por se sustentar em dois pilares de difícil controle: pessoas excelentes e resultados excepcionais, nessa ordem. 

Para começar, a referência foi o banco americano Goldman Sachs, que já tinha uma cultura de meritocracia reconhecida no mercado local. Ele não apenas reproduziu valores e práticas que aprendeu acompanhando a instituição de longe, mas também levava liderados a observá-los.

As primeiras e mais valiosas escolhas de Lemann foram Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto Sicupira, nos dois primeiros anos de operação. Marcel ingressou no banco um ano depois da aquisição, em 1972. Formou-se em economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um ano depois, em 1973, Carlos Alberto Sicupira (Beto) chegou ao Garantia, convidado pelo próprio Lemann. Os dois se conheceram no mar, praticando pesca submarina. 

No início dos anos 1980, o Banco Garantia diversificou: deixou de ser mero investidor de empresas, para entrar no setor de varejo. Entre agosto de 1980 e setembro de 1981, a participação do Garantia não chegava a 1% nas Lojas Americanas, uma iniciativa de Beto. Ao longo de dois anos, o banco comprou 20% das Americanas. Beto empenhou-se em convencer os sócios a comprar o controle da varejista. Três anos depois da aquisição, em 1985, o Garantia vendeu 19% das Lojas Americanas e recuperou os US$ 23 milhões investidos na companhia.

O grupo passou a seguir os passos da Brahma. Seria a próxima conquista. Foram quatro meses de conversas. Em agosto, o Garantia começou a arrematar ações na Brahma em quantidade e velocidade maiores do que fizera até então. Os banqueiros compravam todos os lotes disponíveis de pequenos investidores da Brahma, muitas vezes a preços acima da cotação diária do mercado.

As pesquisas indicavam a vitória de Collor, que tinha 50% das intenções de voto em 30 de setembro, dezesseis dias antes do segundo turno. Mas Lula crescia aos poucos, chegando a 40% nas simulações. Diante da instabilidade político-econômica, a agressividade do Garantia surtiu efeito, e Hubert Gregg, principal executivo da Brahma, temeroso, acabou cedendo. 

A aquisição foi concluída em 27 de outubro de 1989, vinte dias antes do primeiro turno das eleições. Os sócios do Garantia assumiram o controle da empresa, ao comprar 57,7% de seu capital, através do Braco, holding que reunia as participações de Lemann, Beto e Marcel.

Com as complicações advindas com a crise da Rússia, em 1998, o Garantia não resistiu aos seus impactos. Em 10 de julho de 1998, foi anunciada a venda do Banco Garantia para o Credit Suisse First Boston pelo valor de US$ 675 milhões, dos quais US$ 200 milhões foram pagos em dinheiro. Lemann, Marcel e Beto seguiram em frente juntos. 

Lemann atribui o fato de terem se tornado um trio vencedor e duradouro à combinação de diferentes habilidades e ao respeito ao espaço de cada um. Enquanto Lemann era o dono da ideia de comprar uma cervejaria e responsável pelas diretrizes de um modelo de gestão que partia da experiência no Banco Garantia, Marcel Telles seria o grande arquiteto e executor do bem-sucedido caso Brahma – que daria origem à formação da maior cervejaria no mundo no futuro.

Logo no início de sua gestão na Brahma, Marcel determinou que a regra era que todos os departamentos reduzissem suas despesas em 10% e aumentassem suas receitas em 10%. De cara, foram eliminados US$ 50 milhões da linha total de custos.

A base da nova cultura que começava a ser implantado na Brahma, entre o fim de 1989 e o início de 1990, se resumia a um conceito: a atitude de dono. 

Profissionais talentosos e bem preparados, comprometidos com o resultado do trabalho, atuando com disciplina em todas as etapas do processo, seriam recompensados à altura – com a possibilidade de se tornarem sócios do negócio. Exatamente como era feito no Garantia.

De nada adiantaria garantir que a Brahma chegasse com eficiência a todos os cantos do país se a qualidade do produto não fosse boa. Enquanto uma equipe comandava a profissionalização das revendas, outra conduzia a segunda medida definida por Marcel: transformar a cerveja carioca na melhor do Brasil.

Depois de estudos, concluiu-se que a cervejaria tinha fábricas demais – a maioria delas muito pequenas para atender a demanda. Algumas plantas, como as de Jacareí, no interior de São Paulo, eram altamente eficientes (produzindo até 4 mil hectolitros por operador por dia). Outras, mais antigas, produziam apenas entre 150 e 200 hectolitros, usando as mesmas medidas. Em pouco tempo, a empresa fechou mais de dez fábricas. A produção da  Brahma e da Skol, antes separadas, passou a acontecer em indústrias compartilhadas, mas mantendo suas fórmulas originais.

Em meio a discussões sobre aumento de preço, Marcel entrou em contato com Vicente Falconi, apresentado pela secretária de Economia, Dorothea Werneck. Falconi era perito em métodos gerenciais e Marcel o trouxe para dentro da Brahma. No final de 1991, um grupo de trezentos gestores da cervejaria foi convidado para uma palestra de Falconi no Hotel Sheraton, no Rio. Sob a coordenação de Falconi, a diretoria da Brahma utilizou referências no mercado para elevar o nível da qualidade da cerveja e da gestão nas fábricas.

Antarctica, o próximo desafio

Na segunda década de 1900, a Antarctica expandiu rapidamente. Em 1912, foi lançado o primeiro refrigerante da marca, a Soda Limonada. O produto era o embrião de um relevante mercado que chegaria em 1921, com a criação do Guaraná Champagne Antarctica. 

Com a popularização da coca-cola, o guaraná se revelou uma importante arma da Antarctica na briga pelo crescente mercado de refrigerantes. Sua receita nascera a partir de um método de processamento criado pelo médico fluminense Luís Pereira Barreto, que resultava de um xarope. Com base nele, o químico industrial e professor de farmácia Pedro Batista de Andrade criou a fórmula específica da Antarctica. Ele conseguiu diminuir a adstringência e o amargor natural da fruta e adicionou ingredientes como água gaseificada, açúcar e semente de guaraná, aroma natural. O resto é segredo da marca.

Entre as décadas de 1960 e 1980, a Antarctica mudou de patamar. Adquiriu o controle da Bohemia, a mais antiga cervejaria do país, que havia sido criada em Petrópolis, em 1853. A história da Antarctica não seria completa sem menção a atividades desenvolvidas pela companhia, como a Escola Técnica Antarctica e o Hospital Santa Helena, este como parte da Fundação de Helena Zerrener que detinha 60% do controle acionário e encaminhava parte dos lucros da empresa para fins beneficentes.

Fruto dessa Escola Técnica é Victorio de Marchi, que fez carreira na companhia. Ele nasceu em 1938, era descendente de italianos no bairro da Mooca. Entrou na empresa operando na contabilidade. Apresentado ao diretor Walter Belian, por Erna, irmã do mesmo, Victorio ascendeu como executivo do grupo e mais tarde representou a Antartica na fusão com a Brahma.   

A diretoria criou o Grupo Antarctica em 1984 para organizar todas as empresas sob um mesmo guarda-chuva. Entre elas estava a Cervejaria Columbia, de Campinas, a companhia de alimentos Corn Flakes, distribuidoras de bebidas como Dubar, Recife e Beberibe, uma empresa de propaganda (Progres) e uma de malte (Agromalte). Ao todo, 23 empresas.

Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles tinham uma ideia fixa desde a compra da Brahma. O objetivo inicial de ser uma das cinco maiores do mundo logo foi substituído pelo de ser a maior cervejaria do mundo e de comprar a Anheuser-Busch. Em uma teleconferência para investidores no primeiro semestre de 1999, meses antes de anunciar a fusão entre Brahma e Antarctica, Lemann reforçou o projeto com dados mais objetivos: “Daqui a dez anos haverá apenas quinze cervejarias no mundo e eu serei uma delas”.

Marcel ligou para Victorio de Marchi durante o fim de semana de 8 de maio de 1999. Os dois combinaram de almoçar na segunda-feira seguinte, dia 10. Os dois discutiram os princípios básicos que norteariam uma possível fusão: manteriam as duas marcas, Brahma e Antartica; aproveitariam os melhores processos de cada companhia para criar os padrões da nova empresa; instituiriam uma cogestão no conselho de administração, para garantir que as duas companhias estariam representadas.

Victorio sugeriu o nome do novo grupo: União das Cervejarias Nacionais. Mas Marcel pensando já no futuro, deu seu palpite: “Companhia de Bebidas das Américas”. E o palpite prevaleceu, mas na versão inglesa: “American Beverage Company”, cuja sigla foi expressa como AmBev. Nascia uma nova empresa, a maior  do país no ramo.

A disciplina na execução – grande força do modelo da Brahma – seria, mais uma vez, crucial para o plano funcionar. O dia a dia de fabricação, vendas e distribuição tinha de continuar operando normalmente, enquanto as duas companhias se tornavam uma só. 

Desde o primeiro momento, foram instauradas reuniões mensais para acompanhar os resultados das áreas comercial e industrial, assim como as avaliações de desempenho. Em 2000, todos os funcionários já tinham metas para bater.

Entre 2000 e dezembro de 2001, a fusão entre Brahma e Antarctica gerou ganhos de sinergia de R$ 498,5 milhões para a AmBev, somando as áreas industrial, de distribuição, administrativa e de compras. Logo nos primeiros anos, boa parte do empresariado brasileiro, dos mais diversos setores, passou a considerar a companhia uma referência de administração e cultura, se não em todo o seu modelo, em alguma de suas frentes: gestão de pessoas, sistema de metas e remuneração, distribuição eficiente.

Entre as empresas que tentaram replicar o modelo a partir da contratação de ex-funcionários da AmBev, três se destacam: a Gerdau, que contratou o consultor Vicente Falconi, a Administradora de Shoppings BR Malls e a indústria de alimentos BRF, criada a partir da fusão entre Sadia e Perdigão, em 2011.

O golaço da InBev: AmBev + Interbrew

Doze anos antes do nascimento da AmBev no Brasil, uma fusão entre as duas maiores cervejarias da Bélgica agitou o mercado europeu. As rivais Artois e Piedboeuf, donas das populares marcas Stella Artois e Jupiter, respectivamente, se juntaram para criar a Interbrew. Mais do que um negócio, era a união de dois patrimônios centenários do país, com histórias que carregavam tradições na produção de cerveja e na gestão familiar.

Em 1995, uma compra se destacou como a maior já realizada pela companhia, criando oportunidades fora da Europa. A aquisição de 100% da John Labatt, a mais rentável e segunda maior cervejaria do Canadá, custou US$ 2,9 bilhões à empresa belga. O feito garantiu à Interbrew 45% do mercado canadense (atrás da Molson, que tinha 48% naquele ano) e, ainda mais importante, abriu as portas do desejado mercado americano. A Labatt possuía uma fatia relevante do setor nos Estados Unidos desde 1987.

Dentro dos objetivos de alcançar a liderança mundial, por parte do trio do Garantia, estava a aquisição ou fusão da AmBev com a Interbrew. No presente caso, a fusão. Um dos primeiros consensos foi que a Ambev teria participação societária menor no novo negócio (proporcional ao valor de cada empresa), mas o poder de decisão seria dividido igualmente entre as duas companhias. Alguns assuntos só poderiam ser aprovados por ambos os grupos, como a venda da empresa. As definições iniciais indicavam a criação de um documento sofisticado.

Segundo pessoas próximas, Van Damme foi o principal “arquiteto” dos belgas nos termos do acordo que os uniria aos brasileiros. Do lado da Ambev, quem liderava o grupo era Carlos Brito. Em janeiro de 2004, quando o contrato começava a ser construído, ele foi anunciado como novo presidente da empresa, em lugar de Magim Rodriguez que se aposentava.

A Interbrew emitiu 141,7 milhões de novas ações para assumir o controle da Braco – holding de Lemann, Marcel e Beto. As empresas também trocaram ações e ativos que levariam a AmBev a incorporar a canadense Labatt, incluindo sua participação de 30% no capital da Femsa Cerveza e sua participação no capital da Labatt nos Estados Unidos.

O negócio foi avaliado em 8 bilhões de euros e criou a maior cervejaria do mundo em volume produzido, mas não em rentabilidade. A InBev (resultante da fusão) produzia, à época, 19,2 bilhões de litros de cerveja por ano contra 15,2 bilhões da antiga líder, Anheuser-Busch. Em seguida, estavam a SAB Miller, com 13,5 bilhões de litros, a Heineken, com 10,7 bilhões, e a Carlsberg, com 7,8 bilhões.

Do lado dos belgas, a principal contribuição seria o programa de gestão Voyager Plant Optimization (VPO), que ficaria conhecido informalmente na empresa como um “guia para fazer as coisas da maneira correta visando alcançar as metas”. A AmBev contribuiria com suas principais frentes: a de remuneração, com a implantação do sistema de meritocracia, e a de redução constante de custos, com o Orçamento Base Zero.

Um relatório publicado pelo Deusche Bank em 12 de maio de 2005 apontava os resultados do primeiro ano de fusão entre as duas cervejarias. Com o título “The Boys from Brazil” [Os garotos do Brasil], era um atestado não só do sucesso promovido pelos executivos brasileiros, mas também da operação da AmBev para o grupo que acabara de formar.

No encalço da Budweiser: a AB Inbev

Uma das primeiras atitudes de Adolphus Bush como presidente da Anheuser-Bush, cervejaria ícone dos EUA, foi comprar, por meio de um amigo e dono de um restaurante local, chamado Karl Konrad, a receita de uma cerveja clara e com sabor seco que, durante anos, fora produzida por monges numa pequena vila da Boêmia chamada Budweis, região que hoje faz parte da República Checa. Adolphus se inspirou no nome para batizar a cerveja e lançou no mercado norte-americano a Budweiser, um produto que revolucionaria o setor cervejeiro.

A Anheuser-Busch foi a primeira a pasteurizar a bebida nos Estados Unidos e a distribuí-la em mercados distantes da região em que era produzida. Mais tarde, Adolphus foi o primeiro nos Estados Unidos a usar a refrigeração artificial. Com isso as fábricas iam se tornar os centros de distribuição de um sistema logístico que levava a bebida a pontos de venda de todo o país.

Enquanto a liderança na Anheuser-Busch desmoronava, o conselho da InBev se reuniu para concluir os detalhes de uma proposta para comprar a companhia no dia 22 de maio de 2008. Haviam se passado quase vinte anos da compra da Brahma pelos sócios do Banco Garantia, em 1989. Aquele era o ponto mais alto do sonho grande de que Marcel falara em tantas reuniões.

No total, os controladores da InBev queriam estar aptos a oferecer até cerca de US$ 55 bilhões aos norte-americanos da AB. Para isso, precisavam convencer o mercado financeiro a esticar seu limite de empréstimo (35 bilhões) em mais de US$ 10 bilhões. Para Lemann o limite da compra era US$ 45 bilhões.

Apesar da frustração nas conversas com os banqueiros que se seguiram à decisão de Lemann, o Santander se revelou um fiel aliado. Numa reunião que durou quinze horas, das 14 h às 5 h, dois executivos do banco espanhol dispensaram a apresentação em PowerPoint. Pediram para abrir uma planilha em Excel em branco e preencheram seu modelo na hora, com indicadores do balanço da empresa e projeções para ver se o negócio ficaria de pé. No dia seguinte, concluíram que, embora não fosse fácil, a conta poderia fechar. O crédito estava aprovado.

No dia 14 de junho de 2008, foi anunciada a venda. O contrato levou a InBev novamente à posição de maior cervejaria do mundo (em 2007, a empresa havia perdido a liderança do setor para a SAB Miller). 

A Anheuser-Busch InBev tinha 120 mil empregados, faturamento anual de US$ 36,4 bilhões, produzia aproximadamente 25% da cerveja consumida no mundo e era líder nos principais mercados do planeta. Estava criada a AB InBev e a Budweiser se alastrou pela América latina.

A AB InBev havia se comprometido com um plano de redução do endividamento que equivalia a 5,5 vezes o Ebitda da empresa. Até 2013, tinham de diminuir esse número para 2,5 vezes. Mas em 2011, dois anos antes do previsto, atingiu a meta. Reduziu o valor da dívida para US$ 35 bilhões – 2,3 vezes o Ebitda.

SAB Miller, o trunfo final

Inicialmente chamada de Castle Brevery, a cervejaria foi fundada em 1888 pelo inglês Carles Glass. Em apenas nove anos de existência, em 1897, a companhia se tornou a primeira empresa a ser negociada na Bolsa de Valores de Johannesburgo, a maior cidade e principal centro urbano, industrial, comercial e cultural da África do Sul. 

A companhia, que tinha seu controle diluído entre acionistas principalmente do Reino Unido, cresceu à base de aquisições a partir de 1956. As primeiras a serem compradas pela sul-africana foram a Ohlsson’s Brewery e a Chandler’s Union Breweries, o que levou à mudança de nome para South African Breweries (SAB).

Em 2002, a SAB ganhou a atenção de pessoas do mundo todo (e foi alvo de indignação dos americanos) ao adquirir a segunda maior cervejaria dos Estados Unidos, a Miller Brewing Company, por US$ 5,6 bilhões. A Philip Morris (que no ano seguinte passaria a se chamar grupo Altria), controladora da Miller, manteve 36% das ações e três cadeiras no conselho de administração da nova companhia. 

Com a aquisição, a sul-africana passou a se chamar SAB Miller e se tornou a segunda maior produtora de cerveja do mundo, atrás apenas da Anheuser-Busch – que, seis anos mais tarde, seria comprada pela InBev.

Em 2008, a SAB Miller era o plano B da Inbev antes de fazer uma oferta à Anheuser-Busch. Seis anos depois, em 2014, já dona da Budweiser, líder dos Estados Unidos e com seu modo de gestão bem-sucedido na América do Norte e na Europa, a capacidade dos donos e executivos da maior cervejaria do mundo estava provada.

Nos primeiros dias de outubro de 2015, a AB InBev fez uma oferta por escrito de 38 libras por ação – rejeitada pelo conselho da SAB. Então, aumentou sua proposta para 40 libras. Diante da recusa, subiu a oferta: 42,15 libras por ação, totalizando US$ 104 bilhões e um bônus de 44% sobre o preço de fechamento das ações no dia 14 de setembro.

O “sim” da SAB chegou quase uma semana depois, em 13 de outubro, quando a oferta da AB InBev atingiu 44 libras por ação, o que totalizava US$ 106 bilhões – aproximadamente o dobro do valor pago pela compra da Anheuser-Busch seis anos antes. Entre os principais termos assumidos pela cervejaria resultante com o governo sul-africano, estavam o de não realizar nenhuma demissão involuntária como resultado da fusão e investir 1 bilhão de rands em fazendas e outros fornecedores da empresa. 

Desse montante, 610 milhões de rands (cerca de US$ 43,8 milhões) seriam usados para apoiar o desenvolvimento de oitocentos novos fazendeiros e vinte fazendeiros comerciais para produzir mais lúpulo, milho, cevada e malte. O ministro do Desenvolvimento Econômico, Ebrahim Patel, elogiou a AB InBev por conseguir um acordo com o governo em aspectos-chave, dizendo que ele poderia guiar outras empresas com interesse na África do Sul.

A chegada à África do Sul era uma oportunidade para a AB InBev ressignificar toda a sua história, alinhando o passado à maturidade no presente. Seu modelo começara a ser construído, testado e ajustado na Brahma nos anos 1990.

Talvez a AB InBev tenha chegado ao ápice de um capitalismo que dá sinais de esgotamento e agora comece o declínio de uma história – e de um modelo – de sucesso. Talvez consiga atravessar a fronteira e ser pioneira na construção de um novo capitalismo. A resposta ainda não foi dada, pois nada está decidido.

Resenha: Rogério H. Jönck
Imagens: Reprodução 

Ficha técnica:

Título: De um gole só – a história da AmBev
Autora: Ariane Abdallah
Primeira edição: Portfolio Penguin (2019)

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