No começo do século 21, nosso dia a dia financeiro era bem simples, basicamente composto por dinheiro vivo, cartão e cheque. Mas as novas tecnologias que vêm impactando negócios e comportamentos em diversas áreas, como varejo, comunicação, saúde e agricultura, entre outras, não podiam deixar de lado o mundo das finanças.
As formas tradicionais de pagamento ainda existem, porém termos como criptomoedas, fintechs, open banking, blockchain, QRCode, pagamento P2P (pessoa para pessoa), NFC (Near Field Communication), computação quântica e muitos outros inundam uma sociedade cada vez mais “cashless”.
“Os pagamentos digitais estão trazendo mais praticidade, segurança e conveniência para os usuários. É a chance que as pessoas têm de tirar o dinheiro do colchão e poder utilizá-lo de forma segura e confiável no seu dia a dia”, destaca Douglas Lopes, CFO da fintech Airfox, empresa de meios de pagamentos digitais com sede em Boston e atuação no Brasil.
O mundo sem dinheiro, considerado utópico por alguns, já é praticamente realidade em lugares como a Suécia, que tem apenas 2% de todas as transações feitas com dinheiro “de verdade”.
A expectativa é que os suecos vejam cédulas e moedas em apenas 0,5% dos pagamentos até 2020. Por lá, os ônibus já pararam de aceitar dinheiro há algum tempo; e vendedores ambulantes e até igrejas preferem pagamentos e doações digitais.
Não podemos achar que tanta modernidade é exclusiva de sociedades nórdicas sofisticadas. Grandes populações como a chinesa, indiana e mesmo a brasileira também estão migrando rapidamente para novas formas de pagamento digital.
Ironicamente na China, onde surgiram as primeiras cédulas no século VII, o dinheiro está desaparecendo muito rápido. Mais da metade dos pagamentos realizados já são via celular e estima-se que, em 2021, as transações eletrônicas chegarão a US$ 45 trilhões. O uso dos smartphones já é tão disseminado que certos estabelecimentos não aceitam mais dinheiro. Gorjetas de garçons e até esmolas para pedintes já podem ser oferecidas via QRcode.
Um dos responsáveis por este boom de pagamentos digitais na China é o WeChat, que nasceu como aplicativo de mensagens, assim como o WhatsApp, mas virou uma espécie de “superaplicativo” para os chineses. Com ele, dá para resolver quase tudo na vida de uma pessoa: pagar conta, consultar um médico, pedir comida, paquerar, chamar um táxi, ver postagens de amigos e fazer recomendações de serviços, entre diversas outras funcionalidades.
“Estamos vivendo um momento de transição, onde novos modelos de serviços financeiros devem surgir. Se pegarmos o modelo do WeChat, notamos que ele entrega vários serviços financeiros com taxa zero. E, por outro lado, acontecem uma série de micro pagamentos dentro da plataforma com jogos e outros serviços”, conta o especialista em inovação e transformação digital Léo Monte, cofundador da Gr1d, plataforma de inovação que permite às empresas se conectarem com diversas APIs (Interface de Programação de Aplicativos). O WeChat bateu mais de um 1 bilhão de usuários no final do ano passado, sendo popular, inclusive entre os idosos.
No Brasil, os pagamentos eletrônicos com cartões foram maiores que os saques em dinheiro no ano passado, pelo segundo ano consecutivo, representando 41,5% das transações, contra 36,5% do dinheiro e 22% dos cheques. Os números são estratosféricos: foram 18,8 bilhões de transações eletrônicas – 35,8 mil por minuto-, movimentando R$ 1,55 trilhão, o equivalente a 38,3% do consumo das famílias.
A expectativa é que os pagamentos realizados com cartões de crédito, débito e pré-pagos cresçam em torno de 16% em 2019, chegando ao patamar de R$ 1,8 trilhão, de acordo com projeções da Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços), que representa o setor de meios eletrônicos de pagamento. Daria uma participação recorde de 40% em relação ao volume do consumo das famílias brasileiras. O objetivo é chegar a 60% de representatividade no consumo das famílias até 2022.
ALMOÇO PELO APP
No entanto, esse novo cenário já está ficando velho, com cada vez mais consumidores esperando utilizar meios de pagamento digitais em suas compras. Até 2030, as transações via celular substituirão completamente as cédulas e moedas, segundo o Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE), organização profissional norte-americana fundada em 1884 , presente em 160 países e que se dedica ao avanço da tecnologia em benefício da humanidade
Um exemplo vem da Alelo, bandeira especializada em benefícios para os segmentos de alimentação, cultura, transporte e saúde. Quando foi fundada, em 2003, eram tempos de vouchers de papel para pagamento de refeições ou compra de alimentos. A empresa chegou inovando, com o primeiro cartão de plástico com chip do segmento – que já está ficando obsoleto com o aplicativo Meu Alelo, com cerca de 5 milhões de usuários ativos e disponível também para smartwatches.
“Temos avaliado fortemente o pagamento via NFC (Near Field Communication ou comunicação por proximidade). Estamos desenvolvendo opções de pagamento por aproximação justamente porque entendemos que há uma mudança em curso no comportamento das pessoas. Os usuários do benefício-refeição, por exemplo, querem sair para almoçar sem precisar levar carteira ou bolsa”, comenta Cesario Nakamura, presidente da Alelo.
Além dos benefícios-refeição e alimentação, responsáveis por 85% do faturamento, a Alelo vem diversificando o portfólio para áreas como mobilidade corporativa. Com um cartão abastecido pela empresa o funcionário pode, por exemplo, escolher o tipo de transporte para se deslocar, com o uso em diversos modais – carregar o Bilhete Único, aplicativos de compartilhamento de bicicletas, de transporte individual, carro compartilhado, estacionamento, pagamentos em postos de combustível e até táxi aéreo.
Corrida paga
Quando o assunto é mobilidade, a evolução da tecnologia mudou não só a forma como chamamos um táxi e carro por aplicativo, mas também a relação com o dinheiro ‘físico’ e, consequentemente, a maneira como as corridas são pagas. No caso da 99, aplicativo de transporte lançado em 2012 e comprado pela gigante chinesa Didi em 2018, o avanço de carteiras digitais e novos meios de pagamentos ampliou as formas como os motoristas parceiros são remunerados.
“A 99 é a única plataforma que oferece liberdade para os condutores escolherem se querem ou não realizar corridas com pagamento em dinheiro. Além de trazer praticidade, também é um recurso adicional de segurança”, diz Davi Myake, gerente de operações da 99.
A 99 também lançou uma ferramenta que permite que um passageiro se conecte com um taxista diretamente pelo carro. A novidade pode ser usada após acenar para um veículo na rua ou num ponto de táxi.
Basta o usuário chamar um táxi, entrar e clicar no botão localizado no canto inferior direito da tela que fará a leitura via QR Code, permitindo que os passageiros possam pagar diretamente pelo aplicativo.
Carnê virtual
Com tantas possibilidades no universo de pagamentos digitais, nada mais natural do que grandes varejistas voltarem os olhos para o setor. Com cerca de 60 milhões de desbancarizados no Brasil, de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), redes como Pernambucanas e Via Varejo (dona de Casas Bahia e Ponto Frio) decidiram ir além da venda de móveis, eletromésticos e roupas.
Aos 110 anos, a Pernambucanas criou para os consumidores a Conta Digital, que pode ser aberta em uma das 349 lojas da rede, com um documento de identidade e o CPF válido. O cartão, impresso no local, sai em até 10 minutos.
“A Pernambucanas sempre olhou para o futuro, desde o começo. É uma centenária com mindset de startup, ágil e com uma infinita capacidade de se reinventar”, afirma Sérgio Borriello, CEO da Pernambucanas.
Com a Conta Digital da Pernambucanas dá para fazer saques em caixas 24 horas ou nas lojas, depósitos e transferências , além de compras físicas e virtuais no Brasil e exterior. Tem ainda recarga de celular, geração de boletos, pagamento de contas, portabilidade de salários, entre outras funcionalidades.
A Via Varejo, em parceria com a plataforma de banco digital Airfox, também passou a oferecer serviços financeiros para consumidores sem conta em banco. Com o aplicativo da Airfox, é possível fazer depósito e saque em qualquer uma das 1000 lojas das Casas Bahia ou em outros 200 mil estabelecimentos, como Correios, bancos e caixas eletrônicos.
Até o tradicional carnê das Casas Bahia migrou para o mundo digital. Por mês, são emitidos cerca de 300 mil novos carnês, com um portfólio de crédito que chega perto de US$ 1 bilhão.
“A Airfox tem, através de uma inteligência artificial, a capacidade de melhorar a análise de créditos dos usuários – isso vai expandir a possibilidade de oferecer crédito para as pessoas que hoje simplesmente não conseguem ter acesso”, explica Douglas Lopes, CFO da Airfox,
Bom pagador
A gestão inteligente de crédito é justamente a base da fintech Quod, empresa criada pelos cinco maiores bancos do país (BB, Bradesco, Caixa, Itaú e Santander), com foco em Cadastro Positivo. A ideia é combinar técnicas de big data, inteligência artificial e o uso de plataformas tecnológicas de ponta para transformar informações de histórico de pagamentos, e não somente situações de inadimplência, em inteligência, para tomada de decisão na concessão de crédito.
“É uma ferramenta que poderá incluir pessoas que estão fora do sistema de crédito atualmente por não conseguirem comprovar renda, mesmo sendo bons pagadores, ao colocar dados de pagamento de serviços continuados, como telecom, eletricidade, água e saneamento. O tratamento dessa enorme massa de dados seria impossível se não fosse a digitalização cada vez maior das transações do mercado”, analisa Rodrigo Abreu, presidente da Quod.
Neste mundo financeiro digital, bancos tradicionais buscam parcerias com startups para acompanhar a evolução tecnológica e manterem-se relevantes. Aos 76 anos, o Bradesco, que já opera com o banco digital Next e a assistente digital BIA, criou um ecossistema, chamado inovabra, com oito programas baseados em coinovação – com a colaboração entre banco, empresas, startups, investidores, mentores e as próprias equipes internas.
Já são 20 startups fornecedoras de soluções aplicadas e outras 190 “residindo” no espaço de coinovação do Bradesco, o inovabra habitat, além de um braço em Nova York para buscar startups internacionais.
“É uma relação ganha-ganha, ou seja, o banco gera demandas para startups escalarem seus negócios com clientes reais e as startups trazem inovação, novos modelos de negócio e agilidade de implantação de soluções para a empresa”, relata Antranik Haroutiounian, diretor de Pesquisa e Inovação do Bradesco.
Revés
Mas nada é definitivo. Enquanto restaurantes descolados, como a rede de comida de fazenda Dig Inn, em Nova York, não aceitam mais dinheiro, apenas cartão ou pagamento via aplicativos, a super digital Amazon voltou atrás.
A 12ª loja da companhia nos Estados Unidos, aberta no coração de Nova York, trouxe uma novidade: após críticas, é a primeira do tipo a aceitar pagamento em dinheiro. É que um grupo de pessoas é contra as lojas sem caixa. Acham que há discriminação contra os desbancarizados.
Mas quem quiser usar notas e moedas na nova Amazon Go vai precisar pedir ajuda a um funcionário, que registra a compra dos itens online. E ainda é preciso ter cadastro e o aplicativo da Amazon para entrar na loja. Afinal, os dados dos clientes são os itens mais valiosos para o varejista.
Texto: Andrea Martins
Ilustrações: Rodrigo Hamam