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“Quando as lideranças estão adoecidas, a equipe toda fica doente”

Dr. Arthur Guerra, psiquiatra e cofundador da Caliandra Saúde Mental, fala sobre burnout, excesso de conectividade, a importância do sono e como ter uma empresa saudável

 

Denize Bacoccina

As empresas, assim como as pessoas, também podem adoecer. E a liderança é responsável por criar um ambiente de bem-estar, observar mudanças de comportamento da equipe e oferecer ajuda profissional. É essa a visão do psiquiatra Arthur Guerra, professor da Faculdade de Medicina da USP, com ampla experiência clínica e de coordenação de políticas públicas.

Ele também é autor, junto com o publicitário Nizan Guanaes, do livro Você aguenta ser feliz? em que os dois falam sobre a importância da atividade física para a saúde mental. Guerra era psiquiatra de Nizan e lhe receitou a corrida como remédio contra a depressão. Nizan gostou tanto que virou um entusiasta e divulgador do novo estilo de vida.

Há quatro anos, Arthur Guerra fundou, com a também psiquiatra Camila Magalhães, a Caliandra Saúde Mental, para cuidar da saúde mental das empresas. Fazem isso por meio de atendimento emergencial em casos graves como suicídio, burnout ou desastres naturais, ou em projetos maiores, para preparar a liderança da empresa para se conscientizar do seu papel na busca de uma empresa mais saudável.

“Começamos a cuidar da empresa como se fosse um paciente. Não só o executivo, o líder, o diretor, mas a empresa como um todo”, disse Arthur nesta entrevista à [EXP]. Muitas vezes, porém, tudo começa com os executivos. “Vemos que o sofrimento nuclear da empresa acaba sendo com a liderança, com os gerentes, supervisores. Quando essas pessoas estão adoecidas, a equipe toda fica doente”, afirma.

Como fazer o caminho contrário, em direção a uma empresa mais saudável? Essa é uma das questões que ele responde nesta entrevista.

Dr. Arthur, o senhor já tem muita experiência clínica, em projetos de saúde pública, como professor e há quatro anos fundou a Caliandra. Qual foi a lacuna que notou no mercado?

Arthur Guerra – Uma parte importante dos pacientes que temos são executivos altamente adoecidos, estressados, angustiados, depressivos, que consomem álcool, drogas, não se cuidam. Os próprios executivos começaram a nos cutucar, pedindo palestras, e, quando fomos olhar o mercado, vimos que não havia nada desse tipo estruturado, com a nossa expertise, para fazer o diagnóstico e abordar de uma forma moderna e ágil problemas graves que encontrávamos na saúde mental das empresas.

Nós começamos a cuidar da empresa como se fosse um paciente. Não só o executivo, o líder, o diretor, mas a empresa como um todo. E a partir daí começaram a aparecer empresas grandes, modernas. Está sendo uma experiência muito, muito bacana.

Como vocês atuam? Qual é o papel da liderança nesse processo de saúde mental na empresa?

O primeiro passo é ouvir a dor da empresa. Por que eles estão nos chamando? É alguma coisa um pouco mais prática? Nós trabalhamos com empresas que têm problemas emergenciais, como suicídio, ou que lidam com calamidades, problemas graves que precisam de uma atuação imediata, e conseguimos atuar com essa prontidão. O primeiro passo é fazer um diagnóstico. Muitas vezes vemos que o sofrimento nuclear da empresa acaba sendo com a liderança, os gerentes, os supervisores. Quando essas pessoas estão adoecidas, a equipe toda fica doente. Tem um ditado que eu gosto de falar: quando o maestro desafina, a orquestra toda desafina. E esse maestro pode estar nos diferentes níveis hierárquicos. Um gerente que cuida de 15 pessoas é superimportante, porque se ele não estiver bem, se estiver com depressão, ou ansioso, as 15 pessoas da equipe vão estar comprometidas também. O mesmo vale para líderes com equipes de 50, 100, 300 pessoas, ou presidentes de empresas com 30 mil pessoas.

 

“Nós começamos a cuidar da empresa como se fosse um paciente.

Não só o executivo, o líder, o diretor, mas a empresa como um todo.”

 

É aquela frase do avião, né? Coloque a máscara em você antes de cuidar dos outros. Isso vale também para essa situação?

Exatamente. Essa frase é perfeita. Tem um ditado que eu gosto de falar que é o seguinte: o exemplo não é a melhor forma de você ensinar alguma coisa para alguém. É a única. Então, se o exemplo não vier de você, líder, não vai vir de outros lugares. É você que está na liderança e que pode identificar e fazer o encaminhamento para o tratamento.

O que a gente vê na prática é que muitos líderes estão sobrecarregados e não têm esse autocuidado. Pessoas que trabalham demais e glorificam isso. E exigem, com palavras ou pelo próprio exemplo, que toda a equipe faça o mesmo. Como cuidar num ambiente desses?

De forma geral a empresa é composta por seus recursos humanos. O valor da empresa são as pessoas. E elas, de forma geral, não estão dissociadas do mundo onde vivemos. As lideranças, seja na área empresarial, artística, esportiva, ou cultural são muito frágeis. Elas acabam adoecidas não só pela empresa, mas também pelo mundo em que vivem, que está doente. São pessoas que já têm um transtorno, com ou sem a empresa. Algumas empresas são cruéis, apertam e sugam toda sua energia. Se você bater a meta, você é um cara legal. Se não, tchau. Custe o que custar. Por isso temos tantos casos de burnout, as pessoas não aguentam.

O burnout é sempre ligado ao trabalho ou não só?

Burnout é uma doença crônica, ligada ao ambiente de trabalho. Burnout é um quadro em que a pessoa manifesta depressão, cansaço, irritabilidade, falta de eficiência. Ela não tem mais energia pra nada, pensa na morte e pode até tentar se matar. Mas tudo ligado a um ambiente insalubre, onde a pessoa não consegue render bem.

Quando as empresas procuram a Caliandra, quais são as principais queixas que elas trazem?

Normalmente é algo que impacta toda a comunidade, como um suicídio, ou um burnout. Ou em caso de calamidades, como a que ocorreu em Recife, no começo do ano, depois em Petrópolis. As pessoas morrem e as empresas precisam lidar com aquilo. Muitas vezes os líderes percebem que alguma coisa não vai bem. Um departamento vinha entregando resultados e começa a não entregar mais. Nos chamam para ajudar em alguma coisa ligada à saúde mental. Outras vezes o próprio líder quer criar um departamento de saúde mental, como a Heineken, que fez um departamento de felicidade.

Isso está crescendo? É uma tendência no mercado?

É uma tendência. As pessoas entendem que ganhar dinheiro é importante, mas ter qualidade de vida é mais importante. E qualidade de vida, hoje em dia, não se manifesta só pela ausência de doença mental, mas por você dormir bem, se alimentar de forma razoável, fazer algum exercício, ter amigos, relacionamentos na própria empresa e não ficar só fechado no seu grupo ou em você mesmo.

E qual é o papel da liderança quando a empresa quer ir para um caminho mais saudável? Como o líder deve se preparar para construir uma empresa saudável?

As empresas precisam treinar seus líderes, não para que eles façam um diagnóstico psiquiátrico, mas para que possam ouvir de forma atenta as queixas daquele que é liderado por eles. Mesmo não sendo um profissional da área de saúde, o líder vai prestar atenção e perceber se aquela pessoa que ele conhece, com quem sempre trabalhou bem, está mostrando sinais de desequilíbrio. Se está chegando muito irritado, se não fala mais com os colegas, sinais deste tipo. Ele está próximo, consegue ver que tem alguma coisa acontecendo e pode tentar ajudar.

E se o líder não fizer esse papel? É possível fazer esse processo mesmo com a resistência do líder?

Muito difícil. Às vezes, uma empresa tenta terceirizar isso para a Caliandra, diz que não tem tempo para administrar, que querem pagar por isso. Não funciona. As pessoas vão ouvir o líder, não um médico. É o líder que elas respeitam. Elas avaliam como ele se veste, se fez a barba ou não fez, se bebeu a mais em uma festa da empresa ou não. A responsabilidade do líder é gigantesca. Mas quem cuida dessa liderança, que também adoece? Essa é a nossa missão, de cuidar e, sobretudo, tentar prevenir o adoecimento.

Vivemos num mundo de comunicação instantânea, com redes sociais, aplicativos de mensagens. Muitas pessoas não desligam e até se orgulham de estar sempre disponíveis. Qual o efeito disso na nossa saúde mental?

Essas conexões vieram pra ficar, mas é preciso saber desligar, sem a menor dúvida. Esse estilo de vida em que a pessoa dorme pouco, faz cada vez mais sacrifícios para bater a meta e depois da meta tem a meta plus… Isso é uma forma grave de adoecimento. Quando a pessoa quer desligar, não consegue mais, já está adoecida, é um ciclo vicioso. Por isso, em casos mais graves, a pessoa precisa ser internada para conseguir desligar.

E para prevenir, o que se deve fazer? O que qualquer pessoa pode fazer para evitar chegar a este ponto?

Ela tem que gostar dela, em primeiro lugar. Assim ela irá entender seus pontos positivos e negativos, vai conseguir balancear as atividades. Ao conversar sobre o que quer da vida, isso pode trazer angústia, ansiedade, às vezes depressão. Mas tem que passar por isso para melhorar.

Já é muito disseminada a importância da atividade física, mas e o sono? No livro o senhor diz que 70% das pessoas têm dificuldade com o sono no Brasil, acima da média mundial. Qual é a importância do sono?

Pra mim o sono é tudo. Quando vou falar com alguém, a primeira coisa que penso é: será que essa pessoa consegue dormir bem? Ela não precisa dormir dez horas e acordar de forma angelical, mas precisa dormir e acordar melhor no dia seguinte. Tem pessoas que não conseguem dormir, outras acordam muitas vezes durante à noite, outras acordam antes do horário. Isso é ruim quando impacta a qualidade de trabalho.

Vemos especialmente entre os mais jovens uma busca por maior equilíbrio, um propósito no trabalho, mesmo ganhando menos. Existe uma busca maior por equilíbrio hoje em dia?

Eu acho que existe uma busca maior por equilíbrio, mas também existe uma cultura aspiracional. Os médicos jovens de um jeito ou de outro querem ser o doutor Arthur Guerra. Eles almejam isso e falam: mas Arthur qual é o segredo? Me dá o mapa da mina. Não tem mapa da mina, tem trabalho. Ao trabalhar mais e errar mais, você aprende. Vejo que, para os jovens, as relações afetivas são especiais. Outro dia, uma jovem me perguntou se eu sabia o que era podcast. Eu faço um monte de podcasts, mas não falei, dei um pouquinho mais de corda e ela me explicou o que era. Eles cuidam de mim com muito respeito e cuidado.

Tenho 69 anos, mas me sinto como se tivesse 39. Acabamos de montar uma outra empresa, só de inovações em saúde mental, que desenvolve desde o uso de um remédio intranasal para quadros de depressão, até testes neuropsicológicos mais modernos, com realidade virtual.

A pandemia mudou muito o cenário de saúde mental ou isso tudo já estava aí antes?

Eu acho que a pandemia mudou demais. Ela acentuou traços. Quem já tinha um pouco de tristeza, pode ter ficado com depressão. Quem já tinha um pouco de ansiedade, pode ter um ataque de pânico. Quem já era desconfiado, passa a ser paranoide. A pandemia chacoalhou, trouxe um egoísmo, cada um por si e Deus por todos. Havia mais harmonia antes.

 

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