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O momento de voar

Ideias centrais:
1- A fundação Bill&Belinda Gates lançou seu trabalho com o objetivo de salvar a vida das crianças e seu primeiro grande investimento foi em vacinas. Ela viu que imperava a falta de incentivo no mercado para atender as crianças pobres: milhões delas morrem.
2- Melinda e sua equipe chegaram à conclusão: para potencializar melhores resultados, é preciso começar por onde o cenário é mais grave: salvar a vida das mães e bebês recém-nascidos.
3- Quando as mulheres podem decidir o momento de engravidar e espaçar os partos, a mortalidade materna cai, a mortalidade neonatal e infantil caem, mães e bebês são mais saudáveis, os pais têm mais tempo e energia para cuidar de cada filho.
4- Ao enviarmos uma menina para a escola, criamos um ciclo de prosperidade: os impactos positivos se estendem por gerações, levando progresso a cada esfera pública, desde a saúde até o ganho econômico, a igualdade de gênero e a prosperidade nacional.
5- Não se trata de incluir mulheres e meninas em oposição aos homens e meninos e sim que devemos fazê-lo com eles e em favor deles. Trata-se, antes, de trazer as mulheres como estratégia para incluir todo mundo.
Sobre a autora:
Melinda Gates divide com o marido, Bill, a presidência da Fundação Bill&Melinda Gates. O ponto central de seu trabalho se concentra no empoderamento de meninas e mulheres para que realizem plenamente seu potencial. Em 2015, Melinda criou a Pinotal Ventures, empresa de investimentos e incubadora de iniciativas em prol de mulheres e famílias dos Estados Unidos.
A ascensão de uma grande ideia
Melinda Gates, esposa de Bill Gates, era funcionária da Microsoft. Bill a conhecera na empresa e pediu-a em casamento. O destino de Melinda, ou melhor, a missão de Melinda começou a se desenhar com a primeira gravidez. Ao contar sobre a sua gravidez ao marido, Melinda falou que, depois do parto, deixaria a empresa. Bill não gostou muito da proposta. Podemos seguir um pouco a conversa entre ambos, que Melinda transcreve no presente livro:
Bill: “Como assim, não vai voltar?” Resposta de Melinda: “Nós temos sorte, não precisamos de meu salário. O que está em jogo aqui é como queremos criar os nossos filhos. Você não vai diminuir o seu ritmo de trabalho e eu não vejo como conciliar as horas necessárias para eu ter um bom desempenho profissional e ainda cuidar da família”.
Aos poucos, as coisas foram se encaminhando para a filantropia. Por que não dar acesso a microcomputadores às pessoas. Uma forma de isso acontecer, em pequena escala, seria doar computadores às bibliotecas. Quando o projeto terminou, ficou a pergunta: qual o próximo projeto? Talvez a empresa devesse fazer isso para toda a nação. Naquela época, a fundação da Microsoft era apenas uma ideia com um orçamento pequeno.
Melinda e Bill acreditavam que todas as vidas tinham o mesmo valor, mas não era o que se via pelo mundo: a pobreza e a doença afligiam alguns lugares muito mais intensamente do que em outros. Ambos queriam criar uma fundação para lutar contra essas desigualdades, mas não havia ninguém para comandá-la.
Pessoalmente, Melinda não podia assumir um trabalho de tempo integral. Na ocasião, a principal executiva da Microsoft estava de saída. Era muito respeitada. Convidada a assumir a fundação, Patty Stonesifer aceitou e se tornou a sua primeira colaboradora.
Na época, Melinda cuidava da recém-nascida Jenn e viu uma oportunidade de se dedicar aos objetivos da fundação. E outro item entrou na pauta para aliar as duas funções: um pequeno comprimido, um anticoncepcional. Com ele, era possível espaçar gestações. No entanto, os anticoncepcionais abriram os olhos para a realidade no mundo: muitas mulheres com pilhas de crianças, muitas das quais morriam de fome ou de disenteria, por falta de tratamentos simples, elementares. Eram cenas comuns na África, que o casal tinha conhecido na viagem de núpcias. Se anticoncepcionais fossem distribuídos para as mães terem menos filhos, mais tempo para a criação dos já existentes?
Diz Melinda: “Esse foi o maior choque para a minha consciência: milhões de pessoas morriam porque eram pobres e não ouvíamos falar nisso porque elas eram pobres. Foi então que iniciamos nosso trabalho com a saúde global e começamos a enxergar como poderíamos causar impacto”.
A fundação lançou seu trabalho com o objetivo de salvar a vida de crianças, e seu primeiro grande investimento foi em vacinas. Vacinas desenvolvidas nos Estados Unidos demoravam quinze ou mais anos para chegar aos países pobres. 

Pela primeira vez, a fundação da Microsoft viu claramente o que acontece quando não existe incentivo no mercado para atender as crianças pobres: milhões delas morrem.

Cada vez mais em suas viagens, Melinda começou a ver como os anticoncepcionais eram necessários. Conheceu mais e mais mães desesperadas para não engravidar de novo porque não podiam cuidar dos filhos que já tinham. Começou a entender por que, mesmo não tendo ido ali para falar em anticoncepcionais, as mulheres sempre puxavam o assunto.
Quando as mulheres nos países em desenvolvimento espaçam a gravidez em pelo menos três anos, cada bebê tem quase o dobro de probabilidade de sobreviver ao primeiro ano de vida – e tem uma probabilidade 35% maior de chegar aos cinco anos. Isso é justificativa suficiente para expandir o acesso, mas a sobrevivência das crianças é apenas uma das razões.
Além de esforço efetivo da fundação na distribuição de anticoncepcionais, Melinda aceitou um convite do Reino Unido para copatrocinar uma cúpula sobre esse tema em Londres (2012), reunindo o maior número de chefes de estado, especialistas e ativistas. Durante a conferência, muitos países, tanto ricos como pobres, se comprometeram a aumentar investimentos em prol do planejamento familiar: contraceptivos para mais de 120 milhões de mulheres até o fim da década.
Com o passar dos anos, a fundação financiou grupos de apoio de mulheres com vários objetivos diferentes: impedir a disseminação do HIV, ajudar as agricultoras a comprar sementes melhores, auxiliar na concessão de empréstimos. Há numerosos motivos para formar grupos. Mas independentemente do foco original, quando as mulheres recebem informações, ferramentas, verbas e descobrem o poder que elas têm, elas levantam voo e levam o grupo para onde desejam que ele vá.
Empoderando as mães: saúde materna e neonatal
Melinda conheceu Hans Rosling, um médico que escreveu o livro Factfulness, espécie de mapeamento da miséria no mundo. Hans tornou-se amigo e conselheiro de Melinda e da sua fundação. Atualmente, quase 750 milhões de pessoas vivem na extrema pobreza. Em 1990 era 1,85 bilhão. Segundo estrategistas políticos, as pessoas nessa situação vivem com o equivalente a 1,90 dólar por dia. Mas esses números não expressam o desespero da vida que levam. O real significado da extrema pobreza é que, não importa quanto trabalhe, você está preso numa armadilha. Não consegue sair. Era isso que Hans queria transmitir a Melinda.
Esse é o significado que Melinda encontrou no seu trabalho e que se vê também na história de Hans: pobreza é não poder proteger a família. 

Pobreza é não poder salvar os filhos quando outras mulheres com mais dinheiro poderiam. Como o instinto da mãe é proteger os filhos, pobreza é a força mais desempoderadora na Terra. 

Portanto, se quisermos combater a pobreza e empoderar as mulheres, podemos fazer as duas coisas com uma única abordagem: ajudando as mães a proteger os filhos. Foi a partir desta premissa que Bill e Melinda desenvolveram seu trabalho filantrópico.
No fim de 1999, na primeira ofensiva global, a fundação Bill& Melinda se uniu a países e organizações para salvar a vida de crianças menores de 5 anos. Uma parte importante da campanha consistiu em expandir a cobertura mundial de um pacote de vacinas, o que ajudou a reduzir pela metade a mortalidade infantil desde 1990: de 12 milhões por ano para 6 milhões.
Melinda e sua equipe chegaram à conclusão: para potencializar bons resultados ou melhores resultados, precisamos começar por onde o estrago é mais grave. Por isso, o foco em salvar a vida das mães e bebês recém-nascidos. A fundação, em 2003, financiou o trabalho de Vishwajeet, médico com treinamento avançado no Johns Hopkins, que lançara um programa numa aldeia chamada Shivgarth, em Uttar Pradesh, um dos estados mais pobres da Índia.
Ao estudar os partos nas áreas rurais mais pobres do país, Vishwajeet e a equipe da Saksham [entidade assistencial] encontraram muitas práticas comuns que ofereciam grande risco para o bebê. Eles acreditavam que muitas mortes de recém-nascidos poderiam ser evitadas com condutas e procedimentos que custavam pouco e podiam ser realizados pela própria comunidade: aleitamento imediato, manter o bebê aquecido, cortar o cordão umbilical com instrumentos esterilizados. Era apenas uma questão de mudar o comportamento.
Por mais que se precise de mulheres no local para cuidar desses procedimentos, também há necessidade delas em cargos importantes, com visão e poder. Uma dessas mulheres é a Dra. Agnes Bingwaho, ex-ministra da Saúde de Ruanda. Em 2014, Melinda e Agnes foram coautoras de artigo no The Lancet. Chamaram a atenção para o fato de que vidas de muitos recém-nascidos poderiam ser salvas se o mundo conseguisse remediar uma dura realidade: a maioria das mulheres em países de baixa renda dá à luz em casa, sem o auxílio de uma ajudante qualificada.
Todas as coisas boas: planejamento familiar

Alguns dias depois de visitar o programa de Vishwajeet e sua mulher Aarti, que treinava profissionais de saúde comunitária para assistir os partos em casa, Melinda conheceu um programa de saúde materna e neonatal chamado Sure Start, que encoraja as mães a dar à luz em clínicas onde há equipamentos médicos e gente treinada para realizar partos.
Quando Melinda chegou ao local do projeto, foi convidada para observar uma turma de 25 mulheres grávidas que participavam de um jogo de perguntas e respostas a respeito dos princípios da boa saúde. Perguntou às grávidas se elas enfrentavam alguma resistência da família. Uma mulher mais velha contou a Melinda que tinha dado à luz a oito crianças em casa, mas seis tinham morrido menos de uma semana depois do parto. Agora, sua nora estava grávida pela primeira vez e ela queria que a jovem recebesse o melhor atendimento possível.
Melinda diz: “Quando converso com mulheres em países pobres, vejo pouca diferença entre o que todas querem para nós e para nossos filhos. Queremos que as crianças estejam em segurança, sejam saudáveis, felizes, saiam-se bem na escola, realizem seu potencial, cresçam e tenham famílias e meios de vida – que amem e sejam amadas. Quanto a nós, queremos ter saúde, desenvolver nossos talentos e compartilhá-los com a comunidade”. O planejamento familiar é fundamental para satisfazer cada uma dessas necessidades, não importa onde se viva. 
Quando as mulheres podem decidir o momento de engravidar e espaçar os partos, a mortalidade materna cai, a mortalidade neonatal e infantil caem, mães e bebês são mais saudáveis, os pais têm mais tempo e energia para cuidar de cada filho e as famílias dispõem de mais recursos para a alimentação e a educação de cada um. Não havia intervenção mais poderosa – e nenhuma que tivesse sido mais negligenciada.

Uma questão que impediu uma discussão clara e sensata sobre o anticoncepcional foi o aborto. Nos Estados Unidos e ao redor do mundo, o debate emocional e pessoal sobre o aborto pode obscurecer os fatos sobre o poder da contracepção para salvar vidas.

Uma declaração de Melinda na cúpula de planejamento familiar em Londres, em 2012, dá a medida do valor que ela dá à questão: “Em minha palestra daquele dia em Londres perguntei aos delegados: ’Estamos facilitando para as mulheres o acesso aos anticoncepcionais de que elas precisam, quando precisam?’ Falou sobre a viagem que tinha feito alguns anos antes ao bairro Korogocho (palavra que significa “ombro a ombro”), em Nairobi. Melinda estava discutindo métodos contraceptivos lá com um grupo de mulheres quando uma jovem mãe chamada Marianne perguntou: – Quer saber por que eu uso anticoncepcionais? Então, ela levantou o bebê e disse: – Porque quero proporcionar todas as coisas boas a esta criança antes de ter outra.  
Olhando para o alto: meninas na escola

Gary Darmstadt, colega de Melinda na fundação, conheceu Sona numa visita que fez a Kanpur em 2011 para falar sobre planejamento familiar com as mulheres da aldeia, não para abrir uma escola. Durante a conferência, uma menina de nome Sona deu de presente ao palestrante um papagaio feito com resíduos do lixo. Quando Gary agradeceu, a menina retrucou: “ Quero um professor”. Sempre que havia uma pausa, a menina retornava ao “Quero um professor”. Isso se repetiu por mais de cinquenta vezes.
Depois da palestra Gary quis saber mais sobre Sona e perguntou a uma das mulheres presentes. Esta disse: “Sabe, nós contamos como o planejamento familiar nos ajudou. Isso teve um impacto tremendo na nossa vida. Mas a verdade é que, a não ser que nossos filhos estudem, vão continuar aqui, vivendo no lixo como nós. É bom controlar o tamanho da família, mas continuo pobre e ainda cato lixo. Se não puderem frequentar a escola, nossos filhos terão a mesma vida que nós”.
Quando as mulheres escutaram Sona dizendo “quero um professor” e ouviram uma das mulheres falando com Gary sobre educação, juntaram-se e esboçaram um plano. A terra em que Sona vivia com sua família não estava registrada no governo. Assim, não tinham direito legal de usá-la. Nesse ponto, os parceiros da fundação procuraram a autoridade local para que a menina e seus vizinhos fossem registrados como moradores. Quando as famílias tornaram-se moradoras legítimas da terra, tiveram direito a uma gama de serviços – inclusive uma escola.
Mandar meninas como Sona para a escola produz um avanço maravilhoso para elas, para as famílias e para a comunidade. 

Quando enviamos uma menina para a escola, a boa ação não termina nunca: continua por gerações, levando progresso a cada esfera pública, desde a saúde até o ganho econômico, a igualdade de gênero e a prosperidade nacional.

Metade da queda na mortalidade infantil nas últimas décadas pode ser atribuída ao aumento no número de mães que estudaram. E as mães que estudaram têm mais que o dobro de possibilidade de mandar os filhos para a escola.
Um exemplo vem do México. Lá José Gómez de León e alguns colegas puseram em prática, em 1997, um novo programa de educação destinado principalmente à instrução das meninas e chamado de Oportunidades. Passados apenas vinte anos, o México alcançou a paridade de gêneros na educação – não somente no ensino fundamental, mas também no ensino médio e na faculdade. E se tornou o país com a maior porcentagem de mulheres com diplomas em ciência da computação.
Bangladesh também teve sucesso na educação de meninas. Fazle Hasan Abed, rico empresário na Europa, voltando ao país, fundou o BRAC (Bangladesh Rural Advancement Committee) e começou a construir escolas. Quando o programa nasceu, em 1985, cada uma das escolas precisava ter pelo menos 70% de meninas. Todos os professores tinham que ser do sexo feminino e todas precisavam vir da comunidade, para que os pais não temessem pela segurança das filhas. Cada escola do BRAC se programava à época do plantio, para que as famílias que dependessem do trabalho das meninas pudessem mandá-las à escola.
A desigualdade silenciosa: trabalho não remunerado
Para mulheres que passam o dia todo realizando tarefas não remuneradas, os afazeres cotidianos matam os sonhos de toda uma vida. O que se diz com trabalho não remunerado? É o trabalho doméstico: cuidar dos filhos ou de outras pessoas, cozinhar, limpar, fazer compras e outras tarefas cumpridas por um membro da família que não está sendo pago. Essa é a realidade de milhões de mulheres, especialmente nos países mais pobres, onde cabe a elas uma parte muito maior do trabalho não remunerado que faz uma casa funcionar.
Quando as mulheres conseguem reduzir o tempo de trabalho não remunerado, aumentam o tempo de trabalho remunerado. 

De fato, reduzir o trabalho não remunerado das mulheres, de cinco para três horas por dia, aumenta em 20% a participação feminina na força do trabalho. 

É muito significativo porque é o trabalho remunerado que eleva as mulheres em direção à igualdade com os homens e lhes dá poder e independência. É por isso que o desequilíbrio de gêneros nesta atividade é tão relevante. O trabalho não remunerado que a mulher faz em casa é uma barreira para os investimentos que podem fazê-la avançar: melhorar sua formação, obter renda fora de casa, conhecer outras mulheres, tornar-se politicamente ativa. Trata-se de um cenário que obstrui o caminho da mulher para o empoderamento.
A incapacidade dos economistas em reconhecer o trabalho não remunerado ficou ainda mais inaceitável à medida que mais mulheres engrossavam as fileiras do trabalho formal. Uma mulher trabalhava o dia inteiro na empresa. Quando terminava as tarefas remuneradas, ajudava os filhos com os deveres de casa, passava o aspirador de pó na sala, lavava as roupas, preparava o jantar e colocava as crianças na cama – horas e horas de trabalho que passavam despercebidas e não eram contabilizadas.
Uma economista chamada Marilyn Waring compreendeu esse preconceito profundo e começou a procurar os meios de combatê-lo. Eleita para o Parlamento da Nova Zelândia em 1973, quando tinha apenas 23 anos, ela sabia o que era ser uma mulher trabalhadora: sabia também como era ser ignorada pelos homens que criavam as regras.
Waring viajou pelo mundo estudando o trabalho não remunerado – e calculou que, se um empregador contratasse trabalhadores pelo valor de mercado para fazer todas as tarefas que as mulheres realizam sem receber nada por isso, o trabalho não remunerado seria o maior setor da economia global. No entanto, os economistas não consideravam que isso fosse trabalho.
O reconhecimento desse problema levou a alguns esforços para resolvê-lo. Depois que Waring publicou seu livro If Women Counted: A New Feminist Economics em 1988, a economista Diane Elson pensou numa estrutura tripartite para diminuir a diferença entre o tempo que homens e mulheres passavam fazendo trabalho não remunerado. Ela a chamou de 3Rs: reconhecer, reduzir, redistribuir.
Conclusão de Melinda: “Se o objetivo é a parceria entre mulheres e homens, por que dou tanta importância ao empoderamento feminino e aos grupos de mulheres? Minha resposta é que nos fortalecemos umas às outras e frequentemente precisamos nos convencer de que merecemos uma parceria igualitária – só então conseguiremos alcançá-la”.
Quando uma menina não tem voz: casamento infantil

É difícil captar em uma ou duas frases o dano que a prática do casamento infantil causa às meninas, às famílias e às comunidades, mas é útil caracterizar seus perigos. A parceria igualitária no casamento promove a saúde, a prosperidade e o desenvolvimento humano. Induz o respeito. Eleva os dois parceiros. E nada está mais distante da parceria igualitária do que o casamento infantil. Na Índia, onde algumas famílias de meninas ainda pagam dotes (apesar de atualmente os dotes serem ilegais), quanto mais nova a menina, e quanto menos educação tiver recebido, menor o dote que a família precisa pagar para casá-la.
Nesse caso, o mercado deixa claro que, quanto mais impotente a menina, mais atraente ela será para a família que a recebe. Eles não querem uma menina com voz, habilidades ou ideias. Querem uma serviçal obediente e indefesa.
Mabel van Oranje participou daquela cúpula de planejamento familiar em Londres e lá travou amizade com Melinda. Tornaram-se parceiras de trabalhos filantrópicos na Índia, particularmente na questão do casamento infantil. Segundo Melinda, Mabel foi a primeira pessoa a mostrar-lhe a conexão entre planejamento familiar e casamento infantil. As esposas-crianças costumam sofrer pressão intensa para provar sua fertilidade, o que significa que o uso de métodos anticoncepcionais é muito baixo. 

De fato, a porcentagem de mulheres que usam contraceptivos é menor onde a prevalência do casamento infantil é maior. 

E o baixo uso de métodos contraceptivos por parte das meninas é mortal: a principal causa de morte entre jovens de 15 a 19 anos em todo o mundo é o parto.
Em meio à rotina da fundação, Melinda também soube que muitas comunidades que praticam o casamento infantil também realizam o corte genital feminino. Essa prática está profundamente conectada ao casamento precoce. Nas culturas em que ocorre, a genitália da menina é cortada para deixá-la “pronta para o casamento”. Diferentes comunidades praticam diferentes tipos de corte. O mais severo implica não somente cortar o clitóris, mas também costurar a vagina para que ela possa ser aberta quando ela se casar.
Quando comunidades colocam as próprias normas sociais em questão, elas reconhecem as necessidades de pessoas obrigadas a suportar a dor de uma prática que beneficia outras. Isso alivia o fardo dessas pessoas. No caso do casamento infantil, uma discussão comunitária ampla baseada na empatia e balizada pela igualdade leva a um mundo, onde o casamento da mulher não é mais uma obrigação, seu dia de núpcias deixa de ser trágico e seus estudos não terminam aos dez anos de idade.
O preconceito de gênero: mulheres na agricultura

Melinda conheceu o caso de uma agricultora no Malawi e passou a conhecer como as agricultoras tinham tratamento inferior aos homens no mesmo setor, ou seja, desigualdade de gêneros na agricultura.
No dia de Natal, enquanto todo mundo festejava, uma mulher, Patrícia, estava no campo ajoelhada na terra úmida para plantar o amendoim. Estava aproveitando a estação chuvosa, disse ela a Melinda. Seria de esperar que, com tamanho sacrifício, Patrícia fosse tremendamente bem-sucedida, mas o fato é que ela vinha passando dificuldades havia anos. Apesar do trabalho exaustivo, sua família não tinha sequer o básico. Faltava dinheiro para a escola dos filhos, o tipo de investimento capaz de romper o ciclo da pobreza; não tinha dinheiro nem mesmo para comprar um jogo de panelas, o que facilitaria a vida.
Os governos e as organizações de fomento oferecem treinamentos frequentes para os agricultores. Mas as mulheres têm menos liberdade para sair de casa e frequentar esses eventos, ou mesmo para conversar com os técnicos, já que eles costumam ser do sexo masculino. Quando as organizações tentavam usar tecnologias para disseminar informações – por mensagem de texto ou pelo rádio – descobriam que os homens controlavam a tecnologia.
Nesse ínterim, Warren Buffett doou o grosso de sua fortuna para a fundação Gates. Essa doação abriu novas fronteiras. “Quando Warren nos contou sobre sua doação, estávamos explorando várias possibilidades, mas ainda não tínhamos tomado a decisão de aumentar a escala. Seus recursos nos impeliram e logo nos levariam a considerar a equidade de gêneros como um importante foco novo de nossas doações”, confessa Melinda.
A fundação decidiu concentrar as ações na África e no Sudeste Asiático. A África subsaariana era a única região do mundo onde a produtividade por pessoa nas plantações não tinha crescido em vinte anos. Essa foi a abordagem que a fundação estabeleceu bem no início em 2006, quando Rajiv Shah, chefe do novo programa de agricultura da fundação, compareceu a um Simpósio Mundial de Alimentação em Iowa, onde falaram importantes especialistas em agricultura.
Quando as intervenções já tinham ultrapassado o horário previsto, faltava ouvir uma pessoa. Era uma mulher, Catherine Bertini, que tinha sido diretora executiva do programa Mundial de Alimentos da ONU. Catherine foi direto ao ponto:
– Dr. Shah, eu gostaria de lembrar a frase de uma das mães fundadoras dos Estados Unidos da América, Abigail Adams, que escreveu o seguinte ao marido enquanto ele estava na Filadélfia trabalhando na Declaração da Independência: “não se esqueça das mulheres”. Se o senhor e seus colegas na fundação não prestarem atenção nas diferenças de gênero na agricultura, farão o mesmo que muitos outros fizeram no passado: vão desperdiçar seu dinheiro.
Mais tarde, já integrada à fundação Gates, Catherine falou a Bill:
– Gênero tem tudo a ver com eficácia. Queremos que os pequenos agricultores sejam eficazes ao máximo e tenham todas as ferramentas de que precisarem: sementes, fertilizantes, empréstimos, mão de obra. A próxima vez que você estiver na África, passando por uma área rural, olhe pela janela e veja quem está trabalhando nos campos. Quase todos são mulheres. Se você ajudar somente os homens, porque eles é que têm tempo e permissão social, não vai saber do que as mulheres precisam e elas é que estão fazendo a maior parte do trabalho.
Um estudo apresentado em 2011 pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação revelou que as agricultoras nos países em desenvolvimento obtêm colheitas de 20 a 30% menores que as dos homens sendo tão boas quanto eles na lavoura. As mulheres produzem menos porque não têm acesso aos mesmos recursos e às mesmas informações. Se as condições de cultivo fossem iguais, teriam a mesma produtividade.
Nasce uma nova cultura: mulheres no local de trabalho

Este capítulo é marcado por considerações de Melinda sobre seu trabalho na Microsoft e como as mulheres eram empoderadas nos diversos setores da megaempresa. “Compartilho aqui minhas experiência num local de trabalho e uma área que conheço bastante, extraindo algumas lições que se aplicam de maneira ampla e esperando delinear um esboço do ambiente profissional futuro.”
“Nele, espero que nós, mulheres, possamos prosperar como nós mesmas, sem sacrificar nossa personalidade ou nossos objetivos pessoais. Darei ênfase especial ao meu período na Microsoft porque as histórias daqueles dias formaram muitas das minhas visões sobre o local de trabalho – e também porque a área tecnológica tem um poder desproporcional de moldar o futuro”.
Melinda tentou se amoldar, se adaptar à cultura da Microsoft. E também como uma mulher podia se adaptar à rotina dessa empresa de tecnologia.

“A verdade era que eu adorava a missão e a visão da Microsoft, por isso disse a mim mesma: ‘Talvez, antes de sair desse lugar incrível, eu devesse buscar um modo de fazer as coisas que são parte da cultura – defender meus pontos de vista, conhecer os fatos, participar de debates acalorados -, mas fazer isso do meu jeito.’

Desde o início, em vez de ser eu mesma, eu vinha agindo como os homens que, na minha percepção, estavam se dando bem na empresa. A questão me veio como uma revelação: será que eu poderia continuar na companhia e ser eu mesma? Ainda ser durona e forte, mas, ao mesmo tempo, dizer o que penso e ser honesta em relação a quem eu sou – admitindo meus erros e fraquezas em vez de fingir não ter medo nem defeitos, e acima de tudo encontrando outras pessoas que quisessem trabalhar como eu?”
Nessa procura por uma cultura, que integrasse sua cultura com a da empresa, Melinda encontrou apoio numa outra mulher, colega de trabalho. “Comecei minha prospecção pelas mulheres, buscando apoio para o modo como eu queria me posicionar na organização. A amiga com quem mais contei foi Charlotte Guyman.
Charlotte e eu nos conhecemos depois de oito semanas da minha entrada na Microsoft. Eu me lembro nitidamente do dia em que a conheci porque, na mesma data, conheci meu futuro sogro. Todos estávamos na convenção da American Bar Association em San Francisco, onde a Microsoft tinha um estande. Charlotte e eu estávamos escaladas para trabalhar lá, fazendo uma demonstração do Microsoft Word.”
Charlotte fazia parte de um novo grupo chamado marketing de canal, que incluía a comunidade jurídica, e Melinda tentava vender o Microsoft Word para qualquer mercado. Diz Melinda: “Assim, Charlotte e eu tínhamos o mesmo objetivo, a ser alcançado por duas vias diferentes. Essa poderia ter sido uma relação competitiva, mas com Charlotte não foi.
Ao percebermos que tínhamos essa tarefa compartilhada, abrimos o jogo uma com a outra: eu faço isso, você faz aquilo e vamos fazer essa terceira juntas. Funcionou tudo muito bem porque nós queríamos os resultados independentemente de quem receberia o crédito: só queríamos que a Microsoft vencesse”.
Melinda defende a participação das mulheres no ramo de tecnologia: “Para mim é frustrante que as mulheres ainda enfrentem culturas hostis em muitas áreas. Fico especialmente irritada porque estas questões mantêm as mulheres fora do ramo de tecnologia. São empregos imensamente empolgantes.
São divertidos. Inovadores. Pagam bem. Têm um impacto crescente no nosso futuro e o número de vagas aumenta a cada ano. Porém, é mais do que isso. A tecnologia é o ramo de atividade mais poderoso do mundo. Está definindo nosso modo de vida. Se as mulheres não estiverem na tecnologia, não terão poder”.
Deixe seu coração se partir: a ascensão da união
Para consolidar suas considerações, Melinda Gates traz pensamentos de um escritor, que sua mãe admirava. Era Henri Nouwen, que escreveu Life of the Beloved. Era um padre católico com mente de gênio e coração, que dera aulas em Notre Dame, Harvard e Yale.
Trecho citado do livro: “Na minha comunidade, onde há muitos homens e mulheres com deficiências graves, a maior fonte de sofrimento não é a deficiência em si, e sim os sentimentos que a acompanham, a sensação de ser inútil, sem valor, não ser apreciado e amado. É muito mais fácil aceitar a incapacidade de falar, andar ou se alimentar do que a incapacidade de ter algum valor especial para outra pessoa.”
Cada tema deste livro, diz Melinda, é uma porta pela qual as mulheres precisam passar, ou um muro que precisamos derrubar, para podermos contribuir integralmente ao direito de decidir se e quando ter filhos, casar ou não casar, buscar oportunidades, cursar uma universidade, controlar a própria renda, administrar o tempo, buscar os próprios objetivos e ascender no local de trabalho – qualquer local de trabalho.
Pelas mulheres aprisionadas na pobreza e por aquelas, em todos os níveis da sociedade, que são excluídas ou intimidadas por homens poderosos, as mulheres precisam se reunir, conversar, se organizar e liderar – de modo a derrubar os muros e abrir as portas para todo mundo.
Em nenhum momento se trata de oposição entre homens e mulheres:
– Não estou dizendo que deveríamos incluir mulheres e meninas em oposição aos homens e meninos, e sim que devemos fazê-lo com eles e em favor deles. Isso não tem a ver com trazer as mulheres e deixar os outros de fora. Tem a ver com trazer as mulheres como uma estratégia para incluir todas as pessoas.
Texto: Rogério H. Jönck
Imagens: Reprodução e Unsplash
Ficha técnica:

Título: O momento de voar
Título original: The moment of lift
Autora: Melinda Gates
Primeira edição: Editora Sextante (2019)
 

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