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Tecnodiversidade

A relação de diferentes culturas com a tecnologia, vista sob um novo prisma, na busca por mais equilíbrio e sustentabilidade

Ideias centrais: 

1 – Antropoceno é um eixo de tempo global e sua sincronização que tem como base essa visão do progresso tecnológico rumo à singularidade. Recolocar a questão da tecnologia é recusar esse futuro tecnológico homogêneo que nos é oferecido como única opção.

2 – Kissinger: “O Iluminismo começou com ponderações essencialmente filosóficas, disseminadas por um novo tipo de tecnologia. Nossa época está caminhando na direção oposta. Gerou uma tecnologia potencialmente dominante que está à procura de uma filosofia que seja capaz de guiá-la”. 

3 – A diversidade precisa ser pensada sob o retorno à questão da localidade, de modo a rearticular o conceito de técnica por meio de seu reposicionamento nos limites do ambiente, da cultura e do pensamento geográfico. E para tanto serve a análise da arte. 

4 – Em A intuição intelectual e a filosofia chinesa, Mou Tsung-San tenta mostrar que, seguindo as definições de Kant nas operações e limites das faculdades do espírito que fundamentaram o conhecimento científico, vemos que a intuição intelectual excluída da ciência é central no pensamento chinês. 

5 – Uma imunologia global [contra o coronavírus, por exemplo] que possamos usar para confrontar esse estágio da globalização ainda não está disponível – e talvez nunca venha a estar, caso se mantenha essa cultura monotecnológica. 

Sobre o autor

Yuk Hui nasceu na China. Falante de mandarim, cantonês, teochew, inglês, francês e alemão, formou-se em engenharia computacional pela Universidade de Hong Kong, em 2003. Em 2007, concluiu sua dissertação de mestrado em Teoria Cultural pelo Goldsmiths College, em Londres. Entre 2012 e 2018, deu aulas no Instituto de Filosofia e Arte da Universidade Leuphana, em Luneburgo, na Alemanha. Hui fundou a Research Network for Philosophy and Technology para pesquisas nessas áreas. 

Introdução 

Os ensaios que compõem este livro foram publicados independentemente, mas é possível organizá-los sob a mesma rubrica: a da tecnodiversidade, noção que venho desenvolvendo desde minha segunda monografia, The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics [A questão da técnica na China: Um ensaio sobre a cosmotécnica] (2016-19), e com a qual continuo trabalhando. Uma investigação sobre a tecnodiversidade propõe rearticular a questão da tecnologia; em vez de entendê-la como um universo antropológico, precisaremos redescobrir uma multiplicidade de cosmotécnicas e reconstruir suas histórias para projetarmos no Antropoceno as possibilidades que nelas estão adormecidas. 

No século passado, as tecnologias modernas se espalharam pela superfície da Terra e, ao convergirem, deram corpo a uma noosfera no sentido dado por Pierre Teilhard de Chardin, a competição tecnológica definiu a geopolítica e a história. A vitória japonesa sobre a Rússia na Guerra Russo-Japonesa (1904-05) levou à lamentação formulada pelo pensador reacionário alemão Oswald Spengler de que o maior erro cometido pelos brancos na virada do século foi ter exportado suas tecnologias para o Oriente – o Japão, de início um estudante, agora se tornava professor. Essa “consciência tecnológica” persistiu ao longo do século XX e foi marcada pela bomba atômica, pela exploração espacial. E hoje se manifesta na inteligência artificial. Recentemente, alguns comentadores declararam que havíamos entrado em uma nova era axial inaugurada por um desenvolvimento tecnológico mais equilibrado – em outras palavras, uma era em que as conquistas tecnológicas do Oriente parecem ter revertido o movimento unilateral que ia do Ocidente ao Oriente. Essa também é a causa do sentimento neorreacionário que vemos hoje no Ocidente. 

Sem confrontarmos o conceito de tecnologia em si, dificilmente seremos capazes de preservar a alteridade e a diferença. Essa talvez seja a condição sob a qual poderemos pensar uma filosofia pós-europeia. Se Heidegger afirma que o fim da filosofia significa o “começo da civilização mundial fundada no pensamento ocidental-europeu” e que tal final é marcado pela cibernética, então o desconhecimento da tecnologia e a aceleração cega conduzirão apenas ao agravamento dos sintomas enquanto fingem tratá-los. 

Estive no Brasil em setembro de 2019 para uma jornada de palestras, e foi minha primeira visita à América Latina. Tenho lembranças muito agradáveis da acolhida calorosa que recebi de Ronaldo Lemos, Eduardo Viveiros de Castro, Hermano Vianna, Carlos Dowling, Aécio Amaral e de outros colegas, além das discussões intensas que tivemos. Pensando sobre tudo isso agora, nestes tempos turbulentos que estamos vivendo, essa viagem já parece muito distante. Minha breve estadia no Brasil só me permitiu dar uma espiada nessa realidade social e política bastante diferente, mas também confirmou a necessidade de pensar a descolonização a partir da perspectiva da tecnologia. 

Capítulo 1 – Cosmotécnica como cosmopolítica 

Em primeiro lugar, estamos testemunhando os últimos momentos da globalização unilateral. Até agora, a assim chamada “globalização” tem sido em sua maior parte um processo que emana de um só lado e traz consigo a universalização de epistemologias particulares e, através de meios tecnoeconômicos, a elevação de uma visão de mundo regional ao status de metafísica supostamente global. Sabemos que essa globalização unilateral chegou ao fim graças à leitura equivocada que se atribuiu aos ataques de 11 de Setembro, vistos como um ataque do Outro contra o Ocidente. Na verdade, o 11 de Setembro foi um evento “autoimune”, interno ao bloco Atlântico, no qual suas próprias células anticomunistas, adormecidas desde o fim da Guerra Fria, se voltaram contra seu hospedeiro. 

Tese: a tecnologia, como formulada por alguns antropólogos e filósofos, é um universo antropológico entendido como a exteriorização da memória e a superação da dependência dos órgãos. Antítese: a tecnologia não é antropologicamente universal, seu funcionamento é assegurado e limitado por cosmologias particulares que vão além da mera funcionalidade e da utilidade. Assim, não há uma tecnologia única, mas uma multiplicidade de cosmotécnicas. 

Minha tentativa de ir além do discurso de Heidegger quanto à tecnologia tem como base, sobretudo, duas motivações: 1) o desejo de responder à virada ontológica na antropologia que pretende lidar com o problema da modernidade com uma proposta de pluralismo ontológico; e 2) o desejo de atualizar o discurso insuficiente que é largamente associado à crítica de Heidegger à tecnologia. Propus que recolocássemos a questão da técnica como uma variedade de cosmotécnicas, e não como techné ou tecnologia moderna. Em minha pesquisa, usei a China como laboratório para minha tese e tentei reconstruir uma genealogia do pensamento tecnológico chinês. Essa tarefa, no entanto, não se limita à China, já que a ideia central é a de que todas as culturas não europeias deveriam sistematizar suas próprias cosmotécnicas e as histórias dessas cosmotécnicas. O pensamento cosmotécnico chinês consiste em uma longa história de discursos intelectuais sobre a unidade e a relação entre chi e tao. A união do chi e do tao também é a união da moral e do cósmico, já que a metafísica chinesa é, em essência, uma cosmologia moral ou uma metafísica moral, como foi demonstrado pelo filósofo do novo confucionismo Mou Tsung-San. 

O Antropoceno é a planetarização das composições (Gestell [termo de Heidegger]), e a crítica de Heidegger à tecnologia é hoje mais significativa do que nunca. A globalização unilateral que chegou ao fim está dando lugar a uma competição de acelerações tecnológicas e às tentações da guerra, da singularidade tecnológica e dos sonhos (ou dos delírios) transumanistas. O Antropoceno é um eixo de tempo global e de sincronização que tem como base essa visão do progresso tecnológico rumo à singularidade. Recolocar a questão da tecnologia é recusar esse futuro tecnológico homogêneo que nos é apresentado como a única opção. 

Capítulo 2 – Sobre a consciência infeliz dos neorreacionários 

Para os neorreacionários, o Iluminismo em geral – e a democracia em particular – se mostra como um Outro alienado do eu. É ao mesmo tempo remédio e veneno, ou, mais precisamente, um pharmakon, no sentido grego da palavra. Apesar disso, a consciência da contradição ainda é um sentimento, e as tentativas de escapar desse sentimento abrem uma trilha patológica em direção a uma melancolia mais profunda ou a um abismo ilusório de Schwärmerei [arrebatamento] de pensamento especulativo. Peter Thiel cita A decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, para descrever esse eu contraditório e para enquadrar o 11 de Setembro como seu símbolo definitivo. Em Jahre der Entscheidung [Anos decisivos], o próprio Spengler ligava esse sentimento de inquietação a um “espírito prussiano” por ele visto como “a salvação da raça branca”. 

Depois do 11 de Setembro, Thiel previu um aumento na segurança dos aeroportos americanos e um exame mais minucioso na entrada de imigrantes. Essas políticas atingiram um novo grau de intensidade com a proibição de entrada de viajantes imposta pelo governo Donald Trump – o produto da “democracia americana” que atordoou até mesmo Francis Fukuyama, que afirmou recentemente, como um autêntico hegeliano, que “há vinte anos, eu não tinha uma ideia ou uma teoria sobre como as democracias poderiam regredir”. 

A corrida pela concretização da singularidade tecnológica se tornou um dos principais campos de batalha, e a ameaça da guerra nunca foi tão iminente. Thiel já escreveu que “a competição é para os perdedores”, já que é o monopólio que “produz na combinação de quantidade e preço que maximiza seus lucros”. A ironia está no fato de que a não política que Thiel apoia se dirige a um destino indesejável. Devemos evitar a guerra a qualquer custo. Isso não significa que devamos rejeitar por completo a possibilidade de uma superinteligência. Mas devemos resistir a nos conformarmos com um destino predefinido pelo desenvolvimento tecnológico. Precisamos urgentemente imaginar uma nova ordem mundial e agarrar a oportunidade que é oferecida pelo derretimento a fim de desenvolver uma estratégia que se oponha à despolitização e à proletarização implacável que são conduzidas pela fantasia transumanista de uma superinteligência.  

Concluiremos voltando ao Iluminismo e a seu processo mundial. A filosofia é essencial para as revoluções, segundo Condorcet, já que, com um único golpe, ela altera os princípios básicos da política, da sociedade, da moralidade, da educação, da religião, das relações internacionais e da legislação. Essa concepção da filosofia deve ser voltada à questão do pensar uma nova história do mundo. Talvez pudéssemos atribuir ao pensamento a tarefa oposta àquela que lhe foi oferecida pela filosofia iluminista: fragmentar o mundo de acordo com o diferente, em vez de universalizá-lo através do mesmo; induzir o mesmo através do diferente, em vez de deduzir o diferente a partir do mesmo. Um novo pensamento histórico-mundial precisa emergir diante do derretimento do mundo. 

Capítulo 3 – O que vem depois do fim do Iluminismo? 

Em junho de 2018, Henry Kissinger publicou, na revista The Atlantic, o artigo “How the Enlightement Ends” [Como o Iluminismo chega ao fim]. À primeira vista, o texto parece sugerir que o advento da inteligência artificial pôs fim ao Iluminismo, à “Era da Razão”. Máquinas dotadas de poder de análise e de dedução estão ultrapassando a capacidade cognitiva humana. Tecnologias enraizadas no pensamento iluminista estão tomando o lugar da filosofia que, na origem, foi o princípio fundamental delas. Diante desse fim do Iluminismo. Kissinger sugere que precisamos buscar uma nova filosofia: “O Iluminismo começou com ponderações essencialmente filosóficas, disseminadas por um novo tipo de tecnologia. Nossa época está caminhando na direção oposta. Gerou uma tecnologia potencialmente dominante que está à procura de uma filosofia que seja capaz de guiá-la”. A crítica de Kissinger tem, independentemente de menor ou maior acerto, a vantagem de estimular a pensar. 

Como resultado, continua Spengler, os japoneses se tornaram “técnicos de primeira, e, durante a guerra contra a Rússia [1094-05], revelaram uma superioridade técnica que ensinou muito a seus professores”. O Japão expôs o dilema da globalização tecnológica: de um lado, a disseminação da tecnologia constrói um eixo de tempo global, ao longo do qual a modernidade europeia se torna a métrica de todas as civilizações; de outro, essa mesma disseminação faz com que a ciência e a tecnologia modernas deixem de ser ativos exclusivos da modernidade europeia, tornando o Ocidente vulnerável à competição global. Como Hegel apontou na Fenomenologia do Espírito, a fé iluminista substituiu a fé religiosa sem de fato se concretizar, permanecendo assim, nada mais que uma fé. Dessa maneira, o pensamento iluminista nos faz percorrer a longa estrada da globalização ao mesmo tempo, que é derrotado pela própria negação. 

Sobretudo para Simondon, a revolta de grupos minoritários contra a tecnologia em nome da cultura se baseia em uma leitura equivocada do papel da tecnologia, já que ele enxerga na tecnologia uma racionalidade que transcende os limites das diferenças culturais. Mais importante ainda, Simondon tem esperança de que o aperfeiçoamento tecnológico resultará em novas perspectivas para o enfrentamento do problema da alienação e do antagonismo entre cultura e tecnologia. A questão, no entanto, é bem mais complicada do que o otimismo de Simondon parece disposto a admitir. Nos processos de colonização e de modernização, as diferenças tecnológicas também preservam e reforçam diferenças de poder.  

Rejeitar o conceito de humanidade é estilhaçar a ilusão criada por um discurso unificador do humano, ligado a um processo global de modernidade Ocidental. Simultaneamente oportunidade e problema, o processo de sincronização permite que o mundo desfrute da ciência e da tecnologia, mas também o lança em um eixo de tempo que, animado pelo humanismo, está se movendo em direção a um fim apocalíptico, seja na forma da singularidade tecnológica (a “explosão da inteligência”), seja na forma do surgimento de uma “superinteligência”. Martin Heidegger já descrevia esse eixo de tempo global em 1967: “O fim da filosofia revela-se como o triunfo do equipamento controlável de um mundo técnico-científico e da ordem social que lhe corresponde. Fim da filosofia quer dizer: começo da civilização mundial fundada no pensamento ocidental europeu”. 

Mas o que significa dar à tecnologia um novo referencial? Para que isso seja possível, precisamos refletir sobre como nos apropriar da tecnologia moderna por meio da reflexão sistemática e da abordagem da questão das epistemologias e das epistemes à luz de múltiplas cosmotécnicas – ou, colocado de lado de modo mais simples, da tecnodiversidade que possa ser localizada na história e que ainda seja produtiva. Tenho tratado desse assunto em minhas pesquisas, usando a China de exemplo para explorar conceitualizações diferentes de tecnologia e a possibilidade de conceber uma tecnodiversidade como aquela a que me refiro na história e para o futuro. 

Quando não abordadas de maneira dialética, evocações nostálgicas da tradição ou da cultura podem se caracterizar como retornos problemáticos ao nacionalismo, ao essencialismo cultural e ao etnofuturismo. Não nos referimos, neste trabalho, à revolta de pequenos grupos contra  as tecnologias modernas em nome da cultura ou da natureza; estamos elaborando uma estratégia geral para a reapropriação de tecnologias, em primeiro lugar, por meio da afirmação da multiplicidade irredutível das tecnicidades. Ainda que Simondon tenha inspirado o conceito de cosmotécnica, a crítica por ele formulada falha em articular a técnica para além da tradição herdada do humanismo iluminista ocidental. 

Certas reflexões sobre a cultura podem nos fornecer jeitos de compreender esses modos diferentes de pensamento tecnológico. Redescobrir múltiplas cosmotécnicas não implica recusar a inteligência artificial ou o aprendizado da máquina, mas, sim, se apropriar da tecnologia moderna, atribuir outras posições às composições (Gestell) que estão no cerne da tecnologia moderna. Se quisermos ultrapassar a modernidade, não há uma forma de simplesmente reiniciá-la como se ela fosse um computador ou um smartphone. Em vez disso, precisamos escapar de seu eixo de tempo global, escapar de um (trans)humanismo que submete outros seres aos termos de nosso destino e propor uma nova agenda e uma nova imaginação tecnológicas que possibilitem novas formas de vida social, política e estética e novas relações com não humanos, a Terra e o cosmos. 

Capítulo 4 – Máquina e ecologia 

No primeiro capítulo de Cibernética, ou controle e comunicação no animal e na máquina, de 1948, Norbert Wiener, o fundador da cibernética, apresentou pela primeira vez uma oposição entre os tempos newtoniano e bergsoniano. O movimento newtoniano é mecanicista, simétrico no tempo e, portanto, reversível, enquanto o tempo bergsoniano é orgânico, biológico, criativo e irreversível. É apenas a partir da segunda lei da termodinâmica, proposta pelo físico francês Sadi Carnot em 1824 (quase um século depois da morte de Newton, em 1727), que reconheceremos a existência da “flecha do tempo” e o fato de que a assim chamada entropia de um sistema aumenta com o tempo e é irreversível. Já em seu primeiro livro, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência de 1889, Bergson lança um ataque feroz à forma como o tempo era conceitualizado na ciência e na filosofia ocidentais. O tempo é aqui entendido em termos de espaço – intervalos que podem ser representados no espaço, por exemplo. 

Mais do que nunca estamos em uma época de cibernética, já que esta nunca foi uma disciplina que corresse em paralelo a outras como a filosofia ou a psicologia, mas, pelo contrário, pretende ser universal, capaz de unir todas as outras disciplinas – e, assim, poderíamos dizer, se tornar o (modo de) pensamento universal par excellence. A cibernética como pensamento reflexivo universal tomou o lugar que até então sempre fora desempenhado pela filosofia. Essa substituição não é uma rejeição da filosofia, mas, na terminologia de Martin Heidegger, o fim ou o acabamento da filosofia (o termo alemão Ende). Mas o que esse fim significa? Que a filosofia ocidental não tem mais nenhum papel a desempenhar na era tecnológica, uma vez que ela já está concretizada como o próprio destino dessa época? Ou que a filosofia deverá se reinventar para sobreviver, tornar-se uma filosofia pós-europeia (ou, caso prefiram, pós-metafísica, pós-ontológica) – e isso vale para a própria Europa? 

Precisamos acrescentar o porquê de a cibernética ainda não ser suficiente como solução não dualista antes de chegarmos a um entendimento sobre localidade. A lógica da cibernética ainda é formal; por isso, ela subestima o ambiente ao reduzi-lo a mera funcionalidade baseada em um feedback, de modo a integrá-lo à operação de um objeto técnico. Nesse aspecto, o ambiente é exposto como objeto científico e tecnológico, enquanto sua posição no interior da gênese da tecnicidade é ignorada. É também por isso que até a terceira parte de Do modo de existência dos objetos técnicos, Simondon declara que a análise da evolução dos objetos técnicos e a da relação entre o humano e a técnica não são suficientes para a compreensão da tecnicidade, mas que ainda é necessário situar a concretização técnica no interior da gênese da tecnicidade – o que significa relacionar o pensamento tecnológico a outros pensamentos. 

Desde o século XX, o avanço tecnológico nos presenteou com uma convergência que algumas vezes parece inevitável e, em outras, problemática; uma aproximação, no entanto, que hoje precisa ser fragmentada em prol de outras formas de convergência. A investigação das relações entre máquinas e ecologia não se refere tanto a como projetar máquinas mais inteligentes, mas exige, antes de tudo, descobrir a diversidade cosmotécnica – e a diversidade precisa ser pensada sob o retorno à questão da localidade, de modo a rearticular o conceito de técnica por meio de seu reposicionamento nos limites do ambiente, da cultura e do pensamento geográfico. A tarefa deixada a todos nós consiste em um esforço por redescobrir essa cosmotécnica para que possamos atribuir outras posições à tecnologia moderna – e isso por meio da atribuição de posições às composições (Gestell); será somente a partir dessas novas posições que seremos capazes de imaginar “uma nova terra e um povo que não existe ainda” (G. Deleuze e F. Guattari). 

Capítulo 5 – Variedades da experiência da arte 

Já sugerimos que, para que o pensamento possa ter início depois da cibernética, ele exigirá, em primeiro lugar, uma fragmentação como condição para o desdobramento da diversidade  do pensamento filosófico, estético e tecnológico. A fragmentação é não dialética; na verdade, ela tende a desmontar a tendência totalizante da dialética e a liberar aquelas tendências que são eclipsadas por uma visão de progresso da história. Podemos entender de modo retrospectivo que a tese de Heidegger quanto ao fim da filosofia é justamente uma descrição dessa nova condição do filosofar. 

O caminho rumo à filosofia pós-europeia só pode ser preparado por uma reflexão que se comporte como uma anatomia de pensamento a fim de projetá-lo para um futuro que ainda não foi determinado pelo desenvolvimento tecnológico atual e permanece uma incógnita – na forma tanto de contingência como de resistência. Essa civilização mundial baseada no pensamento da Europa ocidental, como afirmado por Heidegger, clama por fragmentação e diversificação. 

Ao confrontar a gigantesca força metafísica na tecnologia moderna, uma iniciativa possível é o retorno à questão da localidade. Quero explorar aqui a questão da arte. Há a arte chinesa, japonesa, europeia etc., mas o que a localidade significa para a arte, para além de um simples objetivo pátrio? A essência da arte é a sua localidade, e será por uma interpretação desta que, juntos, seremos capazes de pensar tragicamente, no sentido de Nietzsche, e para além do trágico. 

Também é aqui que o trabalho do filósofo e sinólogo François Jullien se mostra realmente importante para que possamos conceber a tarefa do pensar após o fim da filosofia, ou o que chamamos de uma filosofia pós-europeia. Jullien não é só um sinólogo que está interessado na história e na filosofia da China, mas também descreveu de modo metódico a China e a Europa como dois temperamentos filosóficos totalmente diferentes. E, por meio de tentativas ousadas de desenvolver essas diferenças, criou um espaço extraordinário em que um novo pensamento pode se desenvolver e se acomodar. 

Quando alguém está diante de uma paisagem pintada por Dong Yuan, por exemplo, ou Guo Xi (1020-1090), a experiência é de dissolução do sujeito, que consegue participar do não racional e nele se torna parte de uma realidade mais ampla. O sujeito em si já não é Nada nem Ser – é ao longo da experiência de reconfiguração dinâmica oferecida pela própria paisagem que a relação sujeito-objeto, tão crucial à ciência moderna, é obliterada. A distância entre o observador e a pintura desaparece e, em seu lugar, é revelado um caminho, um tao (“caminho”, “passagem”, em sentido literal) que leva o observador em direção ao não racional. 

Essa referência ao tao define o papel dos seres humanos e também sua posição no cosmos – isto é, no céu e na terra. Poderíamos nos referir a esse fenômeno como uma cosmologia moral que pode ser encontrada ao longo da história do pensamento e da arte chineses. 

O fim da filosofia marcada pela cibernética exige outro pensamento que seja capaz de reposicionar a arte e a tecnologia em realidades mais amplas. Esse reposicionamento, por sua vez, exige diferentes sensibilidades diante do mundo dos humanos e dos não humanos. Devemos reconhecer que, antes de qualquer outra coisa, a arte é a ciência do sensível. Uma investigação sobre a variedade de experiências na arte deve significar um regresso à questão da estética a partir da análise de sua estrutura e de sua operação – ou seja, de sua lógica. Essa investigação exige estudos sobre formas diferentes de aguçamento dos sentidos e de seus modos de operação, processos essenciais à busca pelo Ser no Ocidente ou para que seja possível seguir o tao no Oriente.  

Capítulo 6 – Sobre os limites da inteligência artificial 

Podemos encontrar aqui um paradoxo da inteligência. À medida que a inteligência se exterioriza de modo constante para que possa interiorizar seus produtos – como aquilo que Hegel chama de “astúcia da razão” -, pode acontecer, em um dado momento, que ocorra uma falha na reintegração da exteriorização, o que leva a inteligência a se sentir ameaçada por seus produtos e a se subordinar a eles – daí a “consciência infeliz” que hoje testemunhamos no pânico do desemprego em massa e da derrocada do elemento humano, que, por sua vez, levam ao ressurgimento de políticas reacionárias. Hoje é quase óbvio que, a longo prazo, a inteligência das máquinas substituirá todas as funções quantificáveis da inteligência humana e desafiará a noção de élan vital atribuída à vida orgânica, como já vinha acontecendo no século XX desde a cibernética. 

Somos frequentemente lembrados dos trabalhos de Warren McCulloch e Walter Pitts – pesquisadores que participaram das Conferências Macy – quando nos referimos a redes neurais artificiais. McCulloch e Pitts apresentaram o primeiro modelo de uma rede neural baseada em princípios cibernéticos. Para eles, a atividade cerebral poderia ser vista como uma operação lógica realizada por neurônios. Neurônios são operadores lógicos e de memória que atualizam seus estados individuais e o resultado geral de modo recursivo. Em resumo, a cibernética também é o nosso ponto de partida, assim como o ponto de vista sob o qual poderemos analisar nossa situação atual. 

Esta interpretação da história é aparentemente diferente da narrativa clássica sobre a origem do termo “inteligência artificial”, que dizem ter sido criado durante a Conferência de Dartmouth de 1956, associado a cientistas e pesquisadores como Marvin Minsky, John McCarthy e Claude Shannon, entre outros. Essa narrativa clássica continua com o avanço no desenvolvimento de uma inteligência artificial simbólica fraca (ou o que John Haugeland chama de “boa e velha inteligência artificial”) para uma mais forte e, por fim, leva à fantasia dos dias de hoje de uma superinteligência. 

O fim do humano não se refere tanto à hipótese de que as máquinas substituirão os seres humanos por completo, já que esse processo pode levar mais tempo do que resta à espécie humana; em vez disso, a inteligência das máquinas transformará os humanos para além do que podemos conceber na imaginação. Estamos em um fluxo de força metafísica que está no processo de transportar os seres humanos para uma destinação desconhecida. Esse também é o mistério da tecnologia moderna. A transformação do humano levará à extinção do Homo sapiens? Ou essa transformação nos conduzirá a uma abertura – um aventura que não apenas rejeite o humanismo, mas que também rearticule as questões da história, da cultura e da vida? 

Quando leu Crítica da razão pura de Kant, o filósofo novo confucionista Mou Tsung-San (1909-1995) ficou atônito e, ao mesmo tempo, sentiu-se iluminado, já que acreditava que a razão especulativa que Kant pretendia limitar era exatamente o que a filosofia chinesa busca cultivar. Em seu ambicioso livro A intuição intelectual e a filosofia chinesa, Mou tenta mostrar que, caso sigamos as definições sistêmicas de Kant para as operações e para os limites das faculdades do espírito que fundamentaram o conhecimento científico, então provavelmente perceberemos que a intuição intelectual que é excluída da ciência tem um papel central no pensamento chinês. 

Mas o que isso significa de fato? Em A intuição intelectual e a filosofia chinesa, e também em seu trabalho de maior maturidade, O fenômeno e a coisa em si, Mou Tsung-San tentou mostrar que a intuição intelectual é essencial ao confucionismo, ao taoísmo e ao budismo. Para Mou, a intuição intelectual está associada à criação (cosmogonia, por exemplo) e à metafísica moral (em oposição à metafísica dos costumes de Kant, cuja base é a capacidade de entendimento do sujeito. Mou encontra apoio teórico nos clássicos chineses, sobretudo nos trabalhos de Hang Tsai – pensador do século XI conhecido por sua cosmogonia moral baseada em uma teoria refinada do chi (energia; no sentido literal, “gás”). 

O desafio da inteligência artificial não está na construção de uma superinteligência, mas na facilitação de uma noodiversidade. E, para que a noodiversidade seja possível, precisaremos desenvolver uma tecnodiversidade. Também é assim que a cosmotécnica se diferencia da “virada ontológica” (que enxerga a cultura sob a perspectiva de uma natureza organísmica), já que sustentamos a hipótese de que precisamos desenvolver com urgência uma tecnodiversidade como orientação para o futuro, como política de decolonização. 

Capítulo 7 – Cem anos de crise 

Em “O que vem depois do fim do Iluminismo?” e em outros ensaios, tentei esboçar como, desde o Iluminismo, o declínio do monoteísmo vem dando lugar a um monotecnologismo (ou um tecnoteísmo) que culminou no transumanismo de hoje. Nós, os modernos, os herdeiros culturais do Hamlet europeu (este Hamlet que, no texto de Valéry, contempla o legado intelectual europeu enquanto conta os crânios de Leibniz, Kant, Hegel e Marx), cem anos depois, já acreditamos e continuamos a acreditar que seremos imortais, que fortaleceremos nosso sistema imunológico contra todos os vírus ou, caso o pior aconteça, que poderemos simplesmente fugir para Marte. Diante da pandemia do coronavírus, as pesquisas sobre viagem espacial parecem irrelevantes para conter o vírus e para salvar vidas. 

O surto mundial anuncia que até agora a globalização só havia cultivado uma cultura monotecnológica capaz apenas de levar a uma resposta autoimune e a um grande retrocesso. Em segundo lugar, o surto e a volta aos Estados-nação revelam os limites históricos e atuais do próprio Estado-nação. Estados-nação modernos tentaram esconder esses limites sob guerras de informação imanentes – de construção de infosferas que ultrapassam fronteiras. Contudo, longe de produzir uma resposta imunológica global, essas infosferas usam a aparente contingência do espaço global para travar uma guerra biológica. Uma imunologia global que possamos usar para confrontar esse estágio da globalização ainda não está disponível – e talvez nunca venha a estar, caso se mantenha essa cultura monotecnológica. 

Os apelos por uma resposta global colocaram o mundo inteiro em um mesmo barco, e a meta de voltar à “vida normal” não é uma resposta adequada. O surto do coronavírus marca a primeira vez, em mais de vinte anos, em que aulas online foram oferecidas por todos os departamentos universitários. Muitos motivos justificam a resistência à educação à distância, mas a maior parte deles é de pouca relevância ou, algumas vezes, até mesmo irracionais (alguns institutos dedicados às culturas digitais ainda consideram a presença física importante para a administração de recursos humanos). A educação à distância não substituirá a presença física, mas certamente ampliará de modo radical o acesso ao conhecimento – e também nos traz de volta à questão da educação em uma época em que muitas universidades estão perdendo financiamento. 

Este também é um momento em que precisamos de solidariedades concretas, digitais, mais fortes. Uma solidariedade digital não é um apelo ao uso intenso do Facebook, do Twitter ou do WeChat, mas um alerta ao abandono da competição perversa da cultura monotecnológica, à produção de tecnologias e de suas formas correspondentes de vida e de habitação no planeta e no cosmos. Talvez não precisemos de nenhuma metafísica da pandemia em nosso mundo pós-metafísico. Talvez também não precisemos de uma ontologia orientada para o vírus. Do que talvez realmente precisemos seja de uma solidariedade concreta que permita o surgimento da diferença e da divergência antes que caia a noite. 

Resenha: Rogério H. Jönck 

Fotos: unsplash e reprodução

Ficha técnica:  

Título: Tecnodiversidade 

Título original: Technodiversity 

Autor: Yuk Hui 

Primeira edição: Ubu Editora

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