Bruno Stefani, Diretor Global de Inovação na Ambev, conta como transformou a cultura de uma das maiores companhias de bebida do mundo
Por Clayton Melo
Como as empresas constroem novos negócios? Essa é uma pergunta cuja resposta é complexa e envolve muitas variáveis, principalmente se pensarmos que vivemos num mercado guiado por algoritmos, conectado e cada vez mais impactado pela transformação digital. A questão é tão complexa que alguém poderia dizer que a resposta “daria uma tese”. No caso de Bruno Stefani, Diretor Global de Inovação da Ambev, vai virar tese mesmo, no sentido acadêmico do termo. Doutorando na Cesar School, instituição do centro de inovação Cesar, que fica no parque tecnológico do Porto Digital, no Recife, Stefani investiga exatamente esse tema em sua pesquisa de doutorado. Dessa forma, ele tenta aliar teoria e prática na busca por entender os caminhos da inovação na construção de futuros.
Futuros que Bruno tem, por dever de ofício, a responsabilidade de construir ao liderar a área de inovação de uma das maiores e mais poderosas companhias de bebidas do mundo. O ponto de partida da estratégia de transformação digital da Ambev se deu em 2018, com a criação das bases de um projeto que tinha como objetivo conectar uma organização do mercado tradicional à nova economia, que é digital, tecnológica e requer corporações mais ágeis, capazes de aprender, testar e interagir com um leque amplo de stakeholders.
A visão que guia esse processo na empresa desde então é a busca por transformar uma organização que sempre foi, na essência, uma fabricante de cervejas numa plataforma de negócios. E o mais importante para essa guinada, diz Bruno em entrevista ao [EXP], é a questão cultural e o fato de o alto comando da empresa ter abraçado a mudança rumo ao digital. “A partir de 2018, a companhia entendeu que era preciso aprender mais sobre tecnologia, inovação, novos modelos de negócios e acompanhar os novos comportamentos do consumidor”, diz Bruno.
Assim, naquele ano o board e a alta direção passaram por uma imersão no Cubo, o hub de inovação do Itaú. Foram dois dias com aulas sobre startups, transformação digital, Inteligência Artificial, blockchain e venture capital, entre outras tendências. Um dos frutos da imersão foi a criação, em 2019, de uma software house, que no ano seguinte ficou mais encorpada e virou a Ambev Tech, a área de tecnologia da companhia. “Deixamos de ser uma empresa que achava que entendia de tudo para ser uma empresa que aprende tudo”, disse Bruno no Innovation Lab, evento do Experience Club.
Encontro de colaboradores na Ambev Tech, na sede da empresa
Com um braço tecnológico robusto dentro de casa, o passo seguinte foi desenvolver uma inteligência de dados e aproximar os profissionais de tecnologia das equipes comerciais e dos pontos de venda. “O futuro da Ambev não é só o desenvolvedor, mas também o vendedor e aqueles que estão na ponta, como o dono do bar, do restaurante. É o desenvolvedor criando códigos e produtos a partir dos dados”, diz. “Na hora em que começa a fazer isso, você deixa de ser uma empresa para ser um ecossistema de oportunidades”, diz.
Tecnologia a serviço do ecossistema
A palavrinha “ecossistema” é central nessa história, e isso tem a ver com startups. Na companhia desde 2017, Bruno estruturou uma estratégia de inovação aberta na Ambev. Ao colocar os executivos em contato com jovens empresas de tecnologia, ele ajudou a abrir a mente das lideranças para o modo de ser, inovar e gerar valor das startups. Esse percurso contou com treinamentos sobre processos de inovação, prototipagem, design thinking, testagem e validação de ideias para líderes que até então não estavam familiarizados com as ferramentas de inovação da nova economia.
A ideia foi preparar os líderes de todas as áreas, da logística ao comercial, passando por marketing e vendas, para que eles próprios estruturassem suas iniciativas com startups, sem dependerem da diretoria de inovação, o que geraria um gargalo e travaria a inovação. Dessa forma, Bruno procurou dar autonomia às demais áreas da empresa, disseminando uma cultura inovadora capaz de andar pelas próprias pernas.
Na prática, isso significa que, no momento de buscar inovação no mercado por meio de seleção de fornecedores ou até mesmo cocriação de projetos com startups, cada setor sabe como encaminhar as ações de um jeito ágil e eficaz. “Na hora em que um diretor, um gerente diz ‘gostei desse método, quero aplicar na minha área’, ele tem todas as condições para identificar startups e entender se aquela solução resolve o seu problema”, afirma Bruno. Isso é um exemplo prático, diz, da descentralização do processo de inovação na companhia. “Brinco que, se entrar no LinkedIn e digitar ‘inovação Ambev”, você vai encontrar uns 15 diretores, e isso é muito bom, dá velocidade para a companhia. Mostra que a empresa aprende sobre ecossistema, sobre consumidor, aprende a criar negócios em velocidade”, diz o executivo.
Histórico de open innovation
A proximidade com o mundo de open innovation foi o que levou Bruno para a Ambev. Formado em engenharia industrial, ele se aproximou no universo de startups quando trabalhava no Itaú. Lá, ele teve a oportunidade de ver de perto e participar da construção de um hub de inovação, o Cubo, em 2015, num momento em que esse modelo engatinhava no Brasil.
“Vim para a Ambev para fazer a ponte entre o ecossistema de startups e a companhia”, diz. “As empresas que hoje têm mais sucesso são aquelas que se abrem para o ecossistema. É necessário falar as duas línguas (das corporações e das startups). Ou melhor, entender que, no fundo, é a mesma língua”, diz referindo-se à busca de ambas pelo crescimento exponencial, com visão global e integrada a um ecossistema.
Essa nova forma de atuar causa uma certa confusão no início, até o esquema estar azeitado, pois tem vários setores fazendo projetos com startups ao mesmo tempo, o que pode eventualmente gerar duplicidades. Mas não tem problema; faz parte do processo. Aí é que entra o papel do diretor global de inovação. “Numa grande empresa, muitas vezes há coisas iguais sendo feitas em diferentes setores, muita startup entrando. Será que não dá para centralizar algumas coisas numa startup só? Esse é o meu papel. Atuo como um curador do ecossistema, buscando trazer os melhores negócios, ensinando as áreas a testarem suas soluções e realizarem suas provas de conceito”.
Tom lúdico na Ambev Tech, na sede da empresa
Várias frentes de inovação aberta
Alguns anos depois de iniciada a estratégia de transformação digital, a Ambev mantém diferentes iniciativas de inovação aberta. Além da Ambev Tech, de serviços de tecnologia, a empresa desenvolve programas voltados a startups, como o Aceleradora 100+, com foco em soluções de sustentabilidade (mudanças climáticas, embalagem circular, agricultura sustentável, gestão de água e Amazônia) e o Além.
Em sua terceira edição, este último consiste em perguntar para o ecossistema o que ele acredita que a empresa deveria fazer para melhorar em suas mais variadas áreas. É a lógica oposta ao que geralmente as companhias fazem: em vez de apresentar o problema e pedir soluções, a Ambev pergunta ao ecossistema quais os problemas eles percebem na empresa.
A partir daí, a solução é criada em parceria com as startups. Já foram feitos 25 negócios com startups, aperfeiçoando atividades como marketing, vendas, sustentabilidade e embalagem. “Nosso objetivo é mapear oportunidades de tendências, talentos e negócios em todo o Brasil, e não apenas em São Paulo, Florianópolis, Belo Horizonte e Recife, que são as cidades com grandes mercados de startups”, disse Stefani.
“O Além inverte a lógica do que as companhias fazem:
em vez de apresentar o problema e pedir soluções,
a Ambev pergunta quais problemas o ecossistema acredita
que a organização tem e a partir daí é criada
uma solução em parceria com startups.”
Um exemplo de parcerias com startups é o projeto-piloto em desenvolvimento com a Speedbird Aero para testar o delivery de bebidas por drones. No voo de simulação, realizado na cidade de Jaguariúna, no interior de São Paulo, em 2021, o drone percorreu dois quilômetros até um condomínio de casas ao lado da fábrica da cervejaria. O aparelho tem capacidade para transportar até dois quilos e pode ser a solução para que bebidas geladas cheguem rapidamente ao consumidor, driblando o trânsito das grandes cidades. “O natural seria pensar dentro de casa, criando uma área para isso. Em vez disso, por meio da inovação aberta, procuramos a melhor startup de drone do Brasil para desenvolver em parceria a iniciativa, que começou com projeto de pesquisa apontando para a falta de regulamentação dessa tecnologia no país”, explicou Stefani.
Inovação dentro de casa
A estratégia de inovação da Ambev não se limita apenas às startups – o intraempreendedorismo também é estimulado. E esse olhar para dentro gerou aquele que é um dos cases de inovação mais bem-sucedidos não só da empresa, mas do mercado: o Zé Delivery. Criado em 2016, o aplicativo de entrega de bebidas realizou mais de 61 milhões de entregas em 2021, número superior aos 27 milhões registrados em 2020, e chegou a 300 cidades. “Esse é um projeto 100% de venture building”, afirma Bruno.
Enquanto é possível fazer centenas de parcerias com startups ao longo de um ano, os projetos voltados a colaboradores não acontecem na mesma velocidade, mas têm como vantagem o fato de nascerem focados nas necessidades da empresa e serem criados por pessoas que conhecem profundamente a cultura da organização. “Temos um time de criação de novos negócios, porque nem tudo dá para fazer com startups. Existem coisas que olhamos e pensamos ‘vai ser muito grande, precisa estar muito bem alinhado com a estratégia da companhia e vai demorar bastante tempo”.
Este foi o caso do Zé Delivery. O aplicativo possibilitou conhecer intimamente um elo essencial da cadeia de negócios sobre o qual a Ambev sabia pouco: o consumidor final. Historicamente, a principal relação da companhia era com os donos de estabelecimentos comerciais. Por isso, o conhecimento acumulado sobre como atender a esse público é imenso.
Entendendo melhor o consumidor
Mas a empresa também percebeu, pela dinâmica do próprio mercado, com o protagonismo alcançado pelo consumidor final nos últimos anos, que seria necessário entender melhor o que deseja e como consome aquele que está na parte final do processo. Isso ficou ainda mais em evidência durante a pandemia, quando o comércio ficou fechado por vários meses e o formato de delivery ganhou espaço no mercado. Nesse período, o consumidor passou a demandar mais serviços de entrega dos mais variados setores, como o de alimentos e bebidas.
Assim, a finalidade principal do Zé Delivery, para a Ambev, não é funcionar como um novo negócio capaz de gerar receita (embora ele gere), mas sim coletar informações sobre hábitos de consumo e, a partir daí, refinar produtos e serviços para atender melhor, por exemplo, os bares e restaurantes de sua cadeia e conectar as startups certas para cada demanda. “O Zé Delivery começou do entendimento de que a gente não conhecia o consumidor final. Eu conhecia muito bem o dono do bar, mas não quem consome os nossos produtos. E aí resolvemos entregar nas casas das pessoas”.
“O impacto de uma empresa como a Ambev
num ecossistema é gigantesco.
Não se trata mais de só vender o meu produto.
É sobre o ecossistema prosperar.”
Com a evolução dos negócios, a startup aos poucos se transforma de um aplicativo de entregas de bebidas para uma plataforma de produtos para confraternizações (churrasquinho, festa de amigos, aniversário). “A gente começou a entender melhor os padrões de compra. Para uma festinha ou churrasco, por exemplo, as pessoas não compram só a cerveja, mas também precisam de gelo, carne, salgadinho. Aí os consumidores começam a perguntar: ‘vocês também entregam a carne?’, diz. “Nós não produzimos carne, mas, pensando pela lógica de ecossistema, não seria interessante colocar uma startup de carne dentro do Zé Delivery?”, diz Bruno.
Esse exemplo citado por ele aconteceu na prática. O Zé Delivery hoje mantém uma parceria com a içougue, startup especializada em atender ao varejo de proximidade – hoje, ela é um dos principais fornecedores de carne do país, com previsão de faturamento de R$ 30 milhões em 2022 e mais de 100 mil toneladas de carnes entregues por mês.
Alimentar o ecossistema
Todas essas experiências de inovação, no fundo, tem o objetivo de fazer a roda do ecossistema da Ambev funcionar. Porque no mercado atual não adianta, diz Bruno, só a corporação ganhar – é preciso que todos os elos sejam atendidos. “O impacto de uma empresa como a Ambev num ecossistema é gigantesco. Como eu consigo prover todo mundo aí dentro? Posso oferecer tecnologia e soluções para a pessoa empreender melhor, porque não se trata mais de vender o meu produto. É sobre o ecossistema prosperar”, diz.
Vale aqui a analogia com um marketplace: se vendedores e compradores têm uma relação de qualidade naquela rede, se estão satisfeitos com os preços praticados, se encontram os produtos que desejam, tudo funciona e o dono do marketplace cresce. “Se você olhar estrategicamente as maiores empresas do mundo, hoje, elas operam como ecossistemas de negócio em cima das suas plataformas digitais. Isso não é coincidência”, afirma. “A estratégia então não é se as grandes empresas tradicionais são não ou não são digitais. Elas precisam tomar a decisão de criar o seu próprio ecossistema ou orbitar no ecossistema de alguém”, diz o diretor global de inovação da Ambev.