Pierre Lucena, presidente do polo tecnológico, conta como a plataforma de inovação no centro antigo da capital pernambucana alcançou R$ 3,7 bilhões em receita se concentrando em softwares para smartphones
O Porto Digital foi criado pelo governo de Pernambuco em dezembro de 2000, com o início das atividades no ano seguinte, tendo como metas ser um polo tecnológico e recuperar o centro antigo de Recife. No final do ano passado, quando completou 21 anos em operação, o projeto se consolidou antecipando a meta de faturamento prevista para 2025.
O Porto faturou R$ 3,67 bilhões e atingiu a marca de quase 15 mil pessoas trabalhando em startups e empresas concentradas em 171 hectares na capital pernambucana, que recebeu cerca de R$ 90 milhões em melhorias urbanas.
Fique ligado:
- O parque de software de Recife é um exemplo de como uma política pública, gerenciada por uma instituição privada, é capaz de recuperar e transformar áreas degradas em importantes pólos de negócios
- Diante do apagão de mão de obra, a saída encontrada pelo Porto digital foi focar na formação de profissionais de tecnologia com incentivos para estudantes da rede pública
- O projeto, bem-sucedido, será replicado em outras áreas e conta com apoio da iniciativa privada, do poder público e da população local
O faturamento foi atingido pelas 350 empresas embarcadas no Porto, que se especializou no desenvolvimento de software. “O que produzimos de mais relevante é a parte mobile. Hoje 100% dos smartphones do Brasil tem uma tecnologia do Porto digital”, afirma o presidente Pierre Lucena.
A mais nova integrante do Porto é a japonesa NTT Data. A companhia, gigante nos ramos de telefonia e tecnologia no país asiático, planeja contratar cerca de 700 pessoas até 2023. Mas o diferencial da parceria será a meta de capacitar 22 mil pessoas no básico necessário para trabalhar com tecnologia. O projeto deve colaborar para reduzir a falta de mão de obra.
Mas Lucena destaca outra iniciativa em parceria com a prefeitura do Recife, que pretende pagar curso universitário de tecnologia a estudantes de escolas públicas com nota alta no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). “Estamos numa área que está crescendo naturalmente. Mas, hoje, a gente esbarra no crescimento por falta de capital humano”, diz.
Nesta entrevista ao EXP, o presidente Pierre Lucena explica como o Porto cresceu e os próximos passos.
O que significa o Porto Digital hoje, após 21 anos em operação?
O Porto Digital é um ecossistema de inovação diferente por ser uma política pública gerenciada por uma instituição privada. Essa diferença tem como objetivo atrair empresas de tecnologia e criar negócios em uma plataforma no centro da cidade do Recife. É ao mesmo tempo um projeto público, que é a recuperação urbana da área central do parque histórico, e uma plataforma de inovação na área digital. Nós somos um parque de software. Esse é o nosso DNA. A gente não produz hardware. Só a parte de conhecimento embarcado. Temos muitas empresas – algumas grandes como Uber, Accenture, Fiat Chrysler, Samsung. Outra coisa importante é o fato de que das dez maiores empresas, sete fizemos em casa. Muitas delas nos programas de incubação. Isso nos tornou um ambiente de inovação muito relevante. Exportamos software para o Brasil e o mundo, incluindo produtos locais feitos aqui e não apenas de grandes empresas que chegaram. Temos um parque muito diversificado na área de produtos e serviços, que vai desde inteligência artificial até cibersegurança. Mas o que produzimos de mais relevante é a parte mobile. Hoje 100% dos smartphones do Brasil tem uma tecnologia do Porto digital. Seja da Apple, Samsung, Nokia, Motorola. Todos têm alguma coisinha que a gente fez. Nenhum deles escapa.
O faturamento anual atingiu R$ 3,67 bilhões em 2021. Esse nível de crescimento é sustentável?
Estamos crescendo exponencialmente e achamos que dá para chegar muito mais longe. Crescemos 94% em faturamento nos últimos três anos e 56% em número de pessoas trabalhando. Estamos hoje com 14.790 pessoas trabalhando nas empresas ligadas ao Porto. Em 2018, tínhamos 9.590 pessoas. O nosso sonho é ter 40 mil, 50 mil pessoas, na cidade trabalhando com software daqui 10 ou 20 anos. No ritmo que estamos crescendo, a gente chega lá.
Como é possível gerar mais empregos em tecnologia, área com gargalo crônico da falta de mão de obra?
A gente quer dobrar o número de funcionários em mais três anos em relação a 2018. Queremos chegar a 19 mil pessoas trabalhando no Porto até 2025. Mas o projeto de longo prazo, daqui uns 20 anos, é ter de 40 mil a 50 mil pessoas trabalhando com softwares. Acho que é possível fazer isso, desde a gente crie uma grande mobilização educacional [no país] a favor da tecnologia. Podemos criar um imaginário de que um parque tecnológico efetivamente tem emprego, e que os jovens podem ter a perspectiva de criar uma carreira global. Isso se planta falando de tecnologia com um projeto educacional e de ciência. O nosso crescimento é muito baseado, obviamente, em muito capital humano. Recife é a cidade brasileira que tem a maior quantidade per capita de alunos de tecnologia. Temos 600 PHD’s em ciências da computação aqui. Isso irradiou um sistema universitário e fez com que conseguíssemos crescer de maneira sustentável. Então, apostamos na formação.
Como opera o projeto Embarque Digital, em parceria com a prefeitura?
O Embarque Digital está dobrando o número de formados [em tecnologia] na cidade em dois anos. Pegamos estudantes com alto desempenho no ENEM e que passaram na Universidade Federal de Pernambuco, em cursos como engenharia civil. A gente pega esse estudante que não entrou na carreira informática e paga um curso na Universidade Católica à noite. Montamos um curso com a Católica que é basicamente de programação, análise de desenvolvimento de sistemas, com duração de dois anos e meio. Uma das disciplinas é feita aqui no Porto Digital todo semestre, como uma residência. Estamos, portanto, dobrando o número de formados com alunos de alto desempenho oriundos de escola pública. Estamos, ao mesmo tempo, fazendo justiça social, diversificando o nosso parque e dobrando os estudantes na cidade. Mas o estudante tem a obrigação de trabalhar nas empresas do Porto Digital primeiro. Se for para outro lugar, terá de devolver o dinheiro para a prefeitura.
Qual o número de estudantes no programa?
Os números de formação [do ensino superior] no Brasil são muito pequenos na tecnologia [não está entre as dez carreiras mais estudadas]. Nós vamos sair de 500 [formandos no Recife na média anual] para mil pessoas formadas. Infelizmente, o país não tem nenhum projeto nacional de formação de capital humano na área de tecnologia. Todos os cursos somados de programação formaram 29 mil pessoas no ano passado. Só Direito formou 126 mil. A China forma 40% das pessoas na área de exatas. O Brasil forma 16% e, mesmo assim, em muita engenharia que não tem mais emprego. Nesse momento não há outro debate sobre crescimento da tecnologia que não sobre o capital humano. Os negócios estão aparecendo, ao contrário de outras áreas. O Brasil exporta pouco software por um motivo simples: a demanda nacional é tão grande que não vale a pena você gastar energia indo para o exterior. As empresas, hoje, recusam clientes.
Existe alguma outra iniciativa educacional?
Entre as empresas do Porto háuma especializada em formação à distância (EAD, em cursos rápidos). Ela forma muita gente [em áreas básicas de tecnologia]. Fizemos um projeto com 15 mil alunos junto com eles. Eles botam o aluno para dentro, formam, e as empresas selecionam os melhores com propostas de emprego. É bem simples o modelo, mas normalmente quem está fazendo os cursos são aqueles que já são da área de tecnologia. Não se forma uma pessoa em TI em três meses. A área de tecnologia e desenvolvimento exige um conjunto formal de conhecimentos que só uma universidade oferece. Essa que é a verdade. Você precisa de dois anos para formar um profissional.
A qualificação de pessoal está no plano de chegada da gigante japonesa NTT Data, certo?
A NTT é a sexta maior empresa de tecnologia do mundo. É a empresa oficial japonesa de telefonia, com um braço de tecnologia com 145 mil empregados no mundo. Está aqui para abrir a maior base dela no Brasil. Já contrataram 130 pessoas em um mês e no primeiro dia abriram 230 novas vagas. Estão apostando no Recife por conta do Embarque Digital, com o qual vamos formar mais gente. É toda uma cadeia positiva chegando por conta disso.
A pandemia e a Guerra ente Rússia e Ucrânia despertaram a atenção para importância de chips para celulares e eletroeletrônicos. O Porto desenvolve algum projeto nessa área?
O Brasil teve uma tentativa frustrada, uma estratégia errada de querer montar chips no Rio Grande do Sul, que enterrou dinheiro que não acabava mais. Temos de aprender a ser bons naquilo que temos a capacidade técnica de entrega. Essa é uma discussão estratégica de países. Se os Estados Unidos não competem com a China nisso [chips], como é que vamos competir?
O projeto a que você se refere é a estatal de semicondutores Ceitec, fechada pelo governo federal em 2021, após prejuízo de R$ 600 milhões ao Tesouro Nacional…
O Brasil não tem não tem como ficar disputando esse mercado. Precisamos ter é parceiros estratégicos que façam chips, enquanto somos bons naquilo que temos condições. A nossa área [de software] tem capacidade de entregar muito mais valor agregado do que a produção de chip. Estou falando de entregar o iOS da Apple ou a integração do notebook da Samsung com o Android, coisas que dão valor agregado muito mais alto e que precisam de conhecimento.
O home-office será permanente na área de tecnologia?
O home-office é uma bolha que, dependendo da capital brasileira, atinge de 8% a 13% dos trabalhadores formais. É pouca gente. Em todo caso, estamos com o movimento de antes da pandemia porque crescemos muito em dois anos. No setor de tecnologia há uma resistência, principalmente dos mais jovens, de voltar ao escritório. O que tenho dito a eles é que ninguém sai de analista para diretor dentro de casa. Existe uma coisa importante na área de gestão: o networking é o bem mais valioso que um gestor pode ter. É a capacidade de agregar pessoas. Tanto é que na pandemia não surgiu nenhum unicórnio [startup avaliada em mais de US$ 1 bilhão] no Brasil. Por quê? Porque os novos negócios dependem de encontros presenciais, da troca de experiências. Se ficar isolado, você será um técnico para o resto da vida. Se for essa sua intenção, ok. Mas se seu o sonho é virar gestor de projetos ou diretor é preciso sair de casa.
Desde 2015, o Porto passou a “atuar no setor de tecnologias urbanas como área estratégica”. Existe algum projeto nesse sentido?
O projeto de reestruturação urbana está na alma do Porto Digital. A gente ocupou o centro ao invés de ir para a Universidade [Federal do Pernambuco], o que seria o natural de um parque tecnológico. O sucesso do Porto aconteceu porque a cidade toda passou a torcer pelo projeto a partir do momento viu a recuperação da área histórica. Aqui seria a Cracolândia do Recife se a gente não estivesse. Agora, estamos elaborando um projeto no bairro de Santo Antônio, que também é área do Porto Digital. A gente está fazendo agora o estudo viário para saber se é possível tirar os ônibus, porque tem 84 linhas de ônibus. O projeto deve ficar pronto daqui alguns meses e terá também uma parte de reestruturação imobiliária.
Imagens: Divulgação
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