Foi em agosto de 1969 que Antônio Luiz Seabra transformava uma borracharia na rua Oscar Freire, em São Paulo, na pequena loja de produtos de beleza que se tornaria, cinco décadas depois, na quarta maior indústria de cosméticos do planeta. À espera das aprovações de órgãos reguladores, até março do ano que vem a Natura terá uma posição definitiva sobre a integração com a Avon. Tudo confirmado, o negócio colocará a companhia brasileira em mais de 100 países, posicionando-se como uma das maiores potências que o mercado de vendas porta a porta já produziu em seus 130 anos história, com operações combinadas de US$ 11 bilhões.
Não por acaso, o emblemático aniversário completado em 2019 vem sendo tratado internamente como “O primeiro ano dos próximos 50 anos da Natura”, conforme explica Fernando Lemos, há um ano à frente da posição de CIO da companhia. Ex-Oracle, ele trocou o mundo da consultoria pelo desafio de ajudar a Natura a implementar um projeto ambicioso de transformação digital, envolvendo não só a integração com outras empresas adquiridas, como também na mudança profunda de relacionamento da empresa com as consultoras de venda direta, clientes, parceiros e a nova aposta de expansão com lojas físicas.
A complexidade desse desafio foi o tema da apresentação do Lemos no CIO2030, realizado pelo Experience Club em 20 de agosto na sede da Athié Wohnrath, em São Paulo, para um público selecionado de 40 lideranças de TI de grandes empresas. “As mudanças que estão acontecendo seguem as conquistas de 2018, quando conseguimos consolidar o turnaround que teve início ainda em 2016”, aponta o executivo da companhia.
Entre as principais novidades para virada da companhia em seu 50º aniversário está o lançamento do cartão Natura, um projeto de bancarização digital das consultoras realizado em parceria com o Santander. A solução de passa pela startup de serviços pré-pagos ContaSuper, integrada ao sistema GetNet de transações de varejo, ambas pertencentes ao banco. Com isso, a revendedoras Natura sem acesso a uma conta bancária passaram a dispor de um pacote de soluções financeiras completo e sem custo. Disponibilizado em maio, o serviço conquistou 100 mil clientes em apenas dois meses, ajudando a cumprir os objetivos de inclusão social e digital estabelecidos pela companhia.
Embora tenha sido visto como uma época em que Natura amargou perda de espaço para a concorrência e resultados ruins em relação ao seu crescimento histórico, o ciclo iniciado em 2012 foi o mais intenso da companhia na busca por novos modelos.
“Ao contrário da maioria das organizações, que ‘convida’ o CIO a cortar custos em momentos difíceis, esse foi o período [2012-2017] em que a companhia Natura mais apostou na inovação para dar a virada no negócio”.
Até então, a TI estava vinculada ao CFO, como área de suporte. Foi ali que a empresa passou apostar na expansão via aquisições, além de implementar diversas mudanças estratégicas importantes, como:
2012 – Primeiro estudo sobre a jornada do consumidor.
2013 – Criação de células ágeis e squads de inovação.
2014 – Construção da Rede Natura, com base integrada de CRM de consultoras e clientes.
– Abertura para integração via APIs.
2015 – Lançamento do App para clientes e consultoras.
– Introdução do sistema de pagamentos com PagSeguro.
2016 – Conclusão da compra de 100% da marca australiana de cosméticos de luxo Aesop.
– Aquisição da marca britânica The Body Shop.
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bsp; – Lançamento da assistente virtual “Nat”.
2017 – Criação das consultoras digitais e programas de treinamento de vendas via App.
2018 – Consolidação do turnaround financeiro na companhia, iniciado em 2016.
2019 – Anúncio da aquisição global da Avon (maio).
– Lançamento do cartão Natura de serviços financeiros (banco virtual) em parceria com o Santander (junho).
Varejo físico
Amparada em sua estratégia de fortalecer a relação com consultoras e clientes por meio da estrutura digital, a Natura aposta mais uma vez no crescimento por meio de lojas físicas – que rendeu críticas no mercado e recomendações negativas de analistas que prejudicaram a companhia na bolsa no passado. Desta vez, explica Lemos, a empresas parte do caminho inverso: vem do conhecimento do consumidor e da força do seu time de vendas a expansão em rede.
A partir do modelo em que líderes de consultoras pontuadas com Prata, Ouro e Diamante por pelos menos seis meses podem ter uma franquia da marca, a Natura já abriu 200 unidades comandas pelas “empresárias da beleza”. A meta é terminar ao ano 1 mil franquias funcionando, além das atuais 52 lojas próprias (43 no Brasil) e venda em 3,8 mil drogarias.
Para evitar o risco de “canibalismo” que prejudica diretamente as revendedoras, a Natura também implementou a unificação do modelo comercial, garantindo a recompensa pelo trabalho das consultoras, mesmo a compra é feita por outro canal, mas a partir da recomendação da colaboradora. Desta forma, as influenciadoras digitais mantêm sua importância no ecossistema, mesmo não respondendo pela venda direta ao cliente final.
A solução para esse intrincado modelo de negócio passa pelo digital e ainda está em construção, a partir do desenvolvimento da área de recomendação e compartilhamento com o consumidor. Lançada sem publicidade em junho, a ferramenta de geração de conteúdo aberta para as consultoras já está recebendo 35 mil atualizações diárias e acumula 2 milhões de conteúdos publicados.
Questionado por Domingos Bruno, CIO para a América Latina da Arcos Dourados, máster-franqueadora do McDonald’s, se a Natura não teme que as lojas físicas minem os resultados com as consultoras, Lemos aposta na força da relação da companhia com todas as pontas envolvidas no processo. “A cultura come a estratégia no café da manhã”. É por isso, segundo ele, que a estratégia tomar por base a cultura, e não o contrário.
Insights da transformação de negócio da Natura:
– 860 mil consultoras ativas na plataforma digital no Brasil e América Latina. Meta: chegar a 2 milhões.
– 20 milhões de consumidores na América Latina.
– 200 milhões de consumidores conectados ao ecossistema no mundo.
– Vendas online: R$ 2 bilhões (20% das vendas líquidas totais de 2018).
– 11% de ganho médio de produtividade nas vendas por consultora com uso do App.
– Banco Virtual: 100 mil contas abertas em dois meses.
– 45 times ágeis, em expansão por diversas áreas além da TI.
Implementação da gestão Lean Startups, visando superar o modelo de gestão baseado em chefia ao longo da próxima década.
Trainee empreendedor
Consultor que também consultor que mudou para o “outro lado”, o Chief Digital Officer da farmacêutica Astrazeneca, Bruno Pina Nunes, questionou como a Natura vem conseguindo implementar, na prática, uma cultura ágil de inovação, sem se prender nas amarras processuais costumeiras na indústria. De acordo Lemos, a chave dessa mudança está no primeiro princípio organizacional da Natura, o apoio ao empreendedorismo.
“Mesmo com a empresa dividida – metade contra e metade a favor – nós decidimos acabar com o programa de trainee por um modelo de seleção que visasse o mindset e não competências, para atrair as pessoas com mais espírito empreendedor”. De 20 mil candidatos, a última seleção ficou com 20 pessoas, dos 18 anos 66 anos, de todos os perfis raciais de gênero e etnias, incluindo também indígenas. Eles têm como missão desenvolver projetos de negócios novos para o fabricante. No fim do período de estágio, podem optar em desenvolver o negócio dentro ou fora da Natura, caso o projeto seja pré-aprovado.
O CIO da empresa acrescenta que nas células ágeis o princípio do empreendedorismo prevalece, por isso os projetos são sempre considerados por um time de três “cofundadores”, que é uma boa média do que acontece no mundo das startups. O trio tem um mês para colocar a ideia de pé e, se aprovada, precisam provar resultados em três meses. Se o projeto ainda não está maduro, eles são convidados a apresentá-lo novamente no mês seguinte.
“Na nossa visão, a transformação da gestão ajuda a superar aquilo que não funciona na cultura da organização, para valorizar aquilo que ela tem de melhor”.
Texto: Arnaldo Comin
Imagens: Marcos Mesquita/Experience Club e Reprodução