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Depois da digital, a "diversity transformation"

Estudo Diversity Matters, da McKinsey, que mapeou mais de 700 empresas em vários países da América Latina em 2020, revelou indicadores muito positivos para empresas que adotam a diversidade em sua organização.

Os níveis de felicidade atingem 63% dos funcionários, índice que cai para apenas 31% em empresas que não são percebidas como comprometidas com a diversidade. A correlação entre saúde organizacional e a performance no negócio também é comprovada pelo estudo. 

No Brasil, algumas grandes empresas, como Itaú, Grupo Fleury e Microsoft, vêm apostando nesse caminho.

No Grupo Fleury, por exemplo, um trio de profissionais composto por um homem negro, uma mulher e um homem trans foram internalizados na área digital, após participarem do programa de capacitação em tecnologia desenvolvido pela Carambola, uma consultoria especializada em ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade social a se inserirem profissionalmente em grandes empresas.

“Quando pessoas do nosso programa de formação trabalham lado a lado com colaboradores da empresa em torno de um desafio de negócio, há uma transformação muito forte na organização”, afirma Gustavo Glasser, CEO da Carambola, que ganhou o Prêmio Empreendedor Social, do jornal Folha de S.Paulo, em 2019.

O resultado tem sido considerado positivo e didático pelo Fleury. “Tivemos um grande aprendizado, quebramos paradigmas e estereótipos”, diz Daniel Périgo, gerente sênior de sustentabilidade e segurança ocupacional da companhia. 

[Daniel Périgo fala sobre os indicadores de sustentabilidade no Grupo Fleury]

Experience Club entrevistou Gustavo Glasser e Daniel Périgo para trazer reflexões sobre o tema diversidade, por meio de distintos pontos de vista.

Gustavo Glasser: 

1 – A realidade de alguém da periferia

“Nasci no Grajaú, na periferia de São Paulo. Meu pai era mecânico e minha mãe vendia bolos. Brinco que minha primeira inovação foi há 20 anos, quando contei para os meus pais que eu achava que era gay e eles também inovaram, de certa forma, pois eles é que saíram de casa depois disso. O que eu pensei na época foi que se a minha família teve essa atitude, o que o mundo iria fazer comigo? Fui trabalhar no que aparecia. Ganhava R$ 30 por dia. Um dia, um médico me falou que o problema da periferia é que não tínhamos educação financeira. Respondi a ele que não tinha como guardar 50% do que eu ganhava se isso representava 25% do mínimo que eu precisava para viver”. 

2 – Tecnologia como saída

“Encontrei um amigo que tinha acabado de conseguir um emprego, havia entrado na faculdade e estava comprando um carro. Perguntei o que ele fazia e ele disse que trabalhava com programação. Me interessei. Ele me emprestou um computador velho, gravou alguns cursos em um CD. Comecei a fazer cursos gratuitos até descobrir um curso da Microsoft que durava três meses. No final, havia uma feira de empregos. O curso era em período integral, então tive que parar de trabalhar para estudar. A consequência disso é que tive que fazer escolhas e fiquei o período do curso sem luz em casa. Me inscrevi em uma competição da Microsoft, a Imagine Cup, e meu projeto ficou em terceiro lugar entre mais de 300 mil inscritos. Aí meu mundo mudou. Fui contratado para trabalhar em um banco. Mas eu conhecia muita gente que tinha uma história muito parecida com a minha e que continuava na periferia. Percebi que tinha que fazer alguma coisa diferente por eles, então fui empreender”. 

3 – O nascimento da Carambola 

“A Carambola nasceu em 2011. No início, era uma fábrica de software. Os projetos eram pequenos ainda, então eu não podia contratar as pessoas ditas como ‘top do mercado’. Me juntei a três rapazes que tinham uma ideia de negócio, mas não a visão da tecnologia. A Carambola foi meio que um investidor do projeto. Esse negócio que começou do zero chegou a 300 pessoas, em um ano, e foi vendido para a Americanas.com, em 2015. Os diretores da B2W me elogiaram por haver conseguido contratar pessoas muito diferentes do perfil usual do mercado, mas ao mesmo tempo me diziam que meu negócio não ia dar certo, pois ao viver de formar pessoas elas em algum momento iriam embora e esse ciclo não fechava”.  

4 – Migrando para a atual missão da Carambola 

“Em 2017, a Microsoft me convidou para contar minha história em um evento em Washington. Foi um reconhecimento do meu trabalho, tive oportunidade de conhecer outros mercados. Quando contava o que fazia no Brasil, todos se interessavam muito pela formação de pessoas. Pensei: talvez o meu negócio seja ser uma empresa de educação, de formar pessoas para o mercado. A partir daí, a Carambola nasceu com a proposta que tem hoje”.  

5 – Desafios da diversidade nas organizações

“O mercado de tecnologia hoje é composto majoritariamente por homens brancos, heterossexuais, cis, de classe média alta. Por que isso acontece? Não podemos atestar que só esse tipo de pessoa sabe programar, ou tem um dom nato. O programa espacial da NASA foi feito majoritariamente por mulheres programadoras negras. As empresas começam a querer contratar pessoas diversas, mas os executivos estão prontos para recebê-las? É muito fácil avaliar uma pessoa do mesmo meio que o nosso. Difícil é avaliar uma pessoa muito diferente da gente.  Qualquer critério não objetivo de avaliação vai causar a exclusão desse profissional que vem do Grajaú e leva três horas de ônibus para chegar no trabalho. Nosso desafio é trazer ferramentas para mostrar que pessoas que estão fora do mercado entregam performance, mas vamos precisar fazer uma tradução do que são esses critérios de avaliação”. 

“Eu costumo escutar que o que fazemos é muito inovador, mas que agora ‘precisamos de pessoas de alta performance’. Porque já existe um viés de achar que pessoas em situação de vulnerabilidade não vão entregar resultado para o negócio.” 

6 – Formatando o modelo de trabalho da Carambola 

“Da minha experiência, sei que o curso gratuito é insuficiente para pessoas em situação de vulnerabilidade, pois elas têm de parar de trabalhar. Então, nós pagamos para ele estudar. Nas turmas da Carambola, contratamos trios de profissionais que vão trabalhar em um desafio concreto de negócio nas organizações. Usando nossa plataforma, conseguimos medir objetivamente as entregas, para que a avaliação seja feita por meio de indicadores claros. Fizemos experiências em algumas turmas da Carambola, em que gestores avaliavam um código desenvolvido e quando não sabiam quem tinha produzido a avaliação era X, mas quando sabiam que o código havia sido feito por uma mulher a avaliação caía em 20%”. 

7 – Capacitação em hard soft skills 

“Preparamos nossos profissionais em quatro aspectos. O primeiro é o método de trabalho: como eu me preparo para uma entrevista, como me organizo e priorizo o que devo fazer. Segundo é o foco no resultado: somente através de indicadores concretos e objetivos eu mostro que o profissional performa, sem estar sujeito a qualquer viés subjetivo de avaliação. O terceiro aspecto são as habilidades técnicas. Ele deve aprender novas tecnologias, a estar em constante aprimoramento.  Por fim, suas habilidades pessoais e interpessoais, como ele lida consigo e com o outro. Criamos fatores objetivos de avaliação para cada um desses aspectos”. 

8 – Carambola nas empresas

“Trabalhamos com empresas do porte do Itaú, Grupo Fleury e Microsoft. No Fleury fizemos a inclusão de um profissional trans. Nosso trabalho permite a inserção da diversidade no dia a dia das organizações. Elas têm situações reais e concretas acontecendo no dia a dia da equipe e os conceitos vão naturalmente se internalizando. Nossa experiência conta que tanto a empresa quanto as pessoas que passam pelo programa da Carambola, e que trabalham juntas em um desafio do negócio, passam por uma transformação importante. Aos poucos elas percebem que têm muito mais coisas em comum do que imaginariam à primeira vista”.  

9 – Transformação e inclusão social 

“Nosso programa tem quatro meses de duração e 80% das pessoas que se formam na Carambola têm renda familiar menor do que dois salários mínimos, com quatro pessoas na família. Durante o programa, o salário é de R$ 2,5 mil e, ao final, são contratadas com salários que variam de R$ 4,7 mil a R$ 6,2 mil, nas empresas. Para cada real investido na Carambola, retornamos 21 vezes em renda para as pessoas que passam pelo programa. As empresas que atuam conosco fazem um impacto social muito positivo. Além disso, temos indícios de que os profissionais da Carambola contratados pelas organizações normalmente têm um baixo turn over e costumam ser promovidas mais rápido do que as de programas tradicionais, o que reduz custos de contratação e treinamento”.

10 – Pandemia e a ilusão da bolha da igualdade

“A pandemia trouxe uma percepção errônea de que nos sentimos mais agregados no trabalho virtual. Mas temos que lembrar que foi criada uma bolha e que a maioria das pessoas está fora dela. Ficou muito fácil dentro desse contexto de trabalho remoto encontrar pessoas parecidas conosco, que têm condições de ter uma Internet em casa, com uma vista bonita por trás. Tem um universo de pessoas que não podem pagar a conta de Internet porque o dinheiro delas acabou três dias depois que o comércio fechou. Outro aspecto que o home office trouxe é uma mudança na dinâmica de trabalho. Nossa plataforma tem mostrado que o trabalho vai começar a ficar cada vez mais assíncrono, pois cada um adequa seu horário às suas necessidades”. 

12 – Visão de futuro

“Queremos escalar esse trabalho de inclusão em 2021. Nossa plataforma de gestão por indicadores objetivos poderá ser adotada pelas empresas que investem em nosso programa. Além disso temos um desafio que é incluir as pessoas que paramos de ‘enxergar’ com a pandemia. Acreditamos também que o futuro dos negócios vai ser por meio de ferramentas de trabalho assíncrono. No ano passado, conseguimos ter pessoas do Rio de Janeiro, do Espírito Santo e do Rio Grande do Sul em nosso programa. São diferentes culturas, necessidades locais que deverão ser olhadas. Depois da transformação digital, que trouxe a tecnologia para todas as áreas da organização, precisamos fazer a diversity transformation nas empresas”. 

Daniel Périgo, gerente sênior de sustentabilidade e segurança ocupacional do Grupo Fleury 

1 – Diversidade no Grupo Fleury 

“A área de Sustentabilidade foi criada em 1990 e hoje tem um amplo escopo de atuação no âmbito do ESG. O Grupo Fleury cresceu muito por meio de fusões e aquisições de empresas de outros estados, além do crescimento orgânico, então a diversidade cultural sempre foi muito presente. Em 2011, escrevemos um manifesto e construímos uma política para diversidade na empresa, investimos em comunicação e treinamento das lideranças. Em 2018, entendemos que deveríamos começar a trabalhar a diversidade sexual e identidade de gênero, pois já tínhamos funcionários e pacientes trans em nossas unidades de atendimento. Foi aí que entendemos que o programa da Carambola tinha uma proposta muito interessante de inclusão efetiva. Atualmente, o Grupo Fleury tem 80% de mulheres na organização e 50% de negros, proporção que cai para 40% e 30% respectivamente em cargos de liderança. Há espaço para melhorias ainda”. 

2 – Grupos de afinidade 

“Hoje o Grupo Fleury tem três grupos de afinidade: o lideranças femininas, o Uzoma, que discute questões étnico-raciais, e o prisma, de temática LBGTQIA+. Esses grupos se reúnem, têm ideias para promover a inclusão e disseminar os conceitos na organização. O Uzoma é uma palavra que vem do dialeto africano e significa ‘o bom caminho a percorrer’. Recentemente, começamos a trabalhar questões de diversidade com os fornecedores, oferecendo treinamentos e ferramentas de avaliação que eles possam usar dentro de suas organizações”.

3 – O trabalho com a Carambola

“Quando a gente fez o trabalho com a Carambola, o Gustavo focou bastante na questão da preparação da empresa para receber os profissionais diversos. Escolhemos a dedo a área de digital para esse piloto, pois entendemos que lá havia um ambiente mais favorável e aberto à metodologia da Carambola. Fizemos várias reuniões prévias para preparar o time de RH, as lideranças da área e as próprias equipes. para criar esse ambiente mais acolhedor e inclusivo.  O trio era composto por um homem trans, uma mulher – que ainda é um gênero sub-representado na área de tecnologia – e um negro.  Além de acompanhar o desenvolvimento dessas pessoas no ponto de vista metodológico e prático, houve um importante aprendizado dentro da organização, de quebra de paradigmas e estereótipos. A área Digital está inserida em TI, que é um pouco mais tradicional. Então, essa experiência serve como influência para as demais áreas dessa diretoria”. 

Texto: Monica Miglio Pedrosa 

Imagens: reprodução

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