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Benefícios e riscos do uso da IA em insurtechs

Tese de doutorado de Thiago Junqueira, professor da FGV-Rio e Sócio da Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados, avalia os vieses da discriminação algorítmica e o impacto do Big Data na precificação de seguros privados 

A flexibilização da regulamentação da Susep (Superintendência de Seguros Privados) para ampliar a inovação no mercado de seguros tem impulsionado a entrada e o crescimento de insurtechs no país. Com foco na experiência do usuário, essas startups empregam muita tecnologia em sua proposta de negócio. Os processos de análise, precificação e pagamento de seguros são feitos por meio de uma tecnologia robusta de análise de dados, algoritmos e inteligência artificial (IA). 

Se por um lado a IA permite a aceleração dos processos de contratação e pagamento de indenizações aos segurados em questão de horas e até minutos, por outro ela cria alguns vieses que podem impactar questões de proteção de privacidade dos usuários. A análise dos impactos do uso da IA e do Big Data na precificação de seguros privados é o tema da tese de doutorado do advogado Thiago Junqueira. 

Em entrevista ao Experience Club, o professor da FGV-Rio e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados, apresenta os resultados de sua tese, que virou livro, e revela como a LGPD regulamenta o uso e coleta de dados e as decisões automatizadas por parte das empresas – e o que precisa ser ainda melhor estruturado do ponto de vista legal.

Tese de Doutorado 

Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros foi o tema da minha tese de doutorado, publicada também em livro pela editora Thomson Reuters, em 2021. O estudo analisa os impactos da IA e do Big Data na precificação dos seguros privados e avalia a ambígua relação entre proteção da privacidade e combate à discriminação. Minha abordagem é imparcial, avalio os aspectos positivos e negativos do uso dessas tecnologias no setor.” 

“Essa é uma tendência sem volta, que está em amplo crescimento. Minha abordagem visa alertar sobre os possíveis riscos do uso da tecnologia e criar mecanismos que não causem prejuízos aos consumidores.” 

Da ciência atuarial à ciência de dados 

“O processo de seguro na era da ciência atuarial era feito com base em informações que eram coletadas no momento da adesão; o seguro era calculado de forma manual, com base no perfil do cliente. Depois da contratação, a seguradora praticamente não tinha mais contato com o segurado, apenas em eventuais casos de sinistro.” 

“Na era da ciência dos dados, as insurtechs solicitam poucos dados no momento da adesão, mas depois pesquisam a vida do segurado para calcular o seguro de forma automatizada. O processo usa algoritmos e IA.” 

“Nestes casos, o acompanhamento após a contratação é diametralmente oposto ao do modelo anterior: a seguradora acompanha como esse cliente dirige, pode dar dicas de prevenção e atuar de forma proativa evitando possíveis sinistros.  

“O levantamento de informações e a interação são contínuos durante toda a jornada e alguns clientes podem sentir que estão sendo constantemente vigiados e que sua liberdade é de certa forma restringida.” 

O caso Lemonade 

“Em 2021, a seguradora digital e Unicórnio norte-americana Lemonade sofreu um pedido de ação coletiva de seus clientes em Nova York, após anunciar em redes sociais que fazia uso de sinais não-verbais para examinar possíveis fraudes e reduzir perdas na regulação de sinistro. Isso acontecia porque os clientes gravavam um vídeo e enviavam para análise da seguradora, como forma de registro do ocorrido.”  

“Em seu blog, a Lemonade anunciou que utiliza 18 algoritmos para avaliar essa gravação em busca de sinais de fraude: tom de voz, expressão facial, entre outros. O problema é que a seguradora deveria ter tido mais transparência com os clientes em relação ao uso de seus dados. A legislação nova-iorquina diz expressamente que é preciso ter um consentimento por escrito nesses casos, o que não era feito pela empresa.” 

“Para se ter uma ideia da quantidade de dados avaliados, enquanto as seguradoras tradicionais nos Estados Unidos utilizam de 20 a 40 pontos de dados na hora da precificação, a Lemonade diz utilizar de 2 mil a 4 mil pontos de dados nesta etapa.” 

Agilidade e preços mais ‘personalizados’  

“É evidente o lado positivo do uso da tecnologia no mercado de seguros. As contratações, que antes levavam até 15 dias para serem efetivadas, e o pagamento do sinistro, que tinha prazos de até 30 dias, agora são efetivadas em segundos ou minutos. No máximo em poucos dias.”  

“Além disso, em um seguro de automóveis, a idade ou o gênero podem não mais importar para os algoritmos. O que faz a diferença é a forma como você dirige. No seguro de vida, seus hábitos alimentares e a prática de esportes podem fazer com que o seguro de alguém com 50 anos seja mais baixo do que o de um indivíduo obeso e sedentário de 30 anos.” 

“A contrapartida é que o usuário começará a ser monitorado, seja na forma como dirige, ou com uma pulseira inteligente que mede seus sinais vitais. Enquanto isso pode ser visto como um benefício e um estímulo aos bons hábitos para alguns, pode ser opressor para outros.”

LGPD  e seguros 

“A Lei Geral de Proteção de Dados traz importantes bases legais que legislam sobre o uso de dados do usuário. Além do consentimento de uso por parte do cliente, há o legítimo interesse e o exercício regular de direito. Geralmente a proteção de privacidade é vista como aliada da proteção contra a discriminação. Por exemplo, não é legítimo que se colete dados de saúde de uma pessoa sem seu consentimento.” 

“Seguros é uma das poucas modalidades em que o fornecedor pode recusar a contratação, dependendo do risco para o grupo de segurados, de acordo com o princípio do mutualismo: cada novo entrante compartilha seu risco com outros que já estão no grupo. Isso é regulamentado pela Susep. A normativa permite a recusa da contratação, desde que justificada.” 

“Minha recomendação é que as normas de seguros sejam vistas à luz da LGPD.”

Decisões automatizadas e LGPD 

“O Artigo 20 da LGPD permite ao consumidor o direito à revisão e à explicação das decisões automatizadas feitas por empresas. Embora a lei trate destes direitos, ela também fala que eles não serão aplicáveis se houver segredo industrial ou comercial por parte desse agente de tratamento.” 

“No entanto, se a seguradora alegar que tem segredo comercial ou industrial, ela estará propícia a uma auditoria. O que ainda não está claro é se essa auditoria seria feita pela ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) ou pela Susep. Este é um dos pontos que precisa ser melhor elaborado.”    

“Outra questão a considerar é se a ANPD teria fôlego para exercer esse papel de fiscalização, considerando que sua estrutura é muito enxuta.” 

Viés discriminatório dos algoritmos 

“Os algoritmos são treinados, portanto eles precisam usar dados atualizados, não-enviesados e representativos para apresentar um resultado não-discriminatório”.

“Um caso muito conhecido nos Estados Unidos revelou que programas de IA não permitiam o desbloqueio de determinado smartphone por reconhecimento facial quando feitos por pessoas negras. Isso porque o algoritmo foi treinado com uma base de dados que não refletia a diversidade daquela população, e o input de dados é essencial para a acuracidade do processo.” 

“Em relação aos algoritmos, alguns autores alegam que, quando a tomada de decisão for muito importante para a vida de uma pessoa, como análise de crédito, mercado de trabalho ou mesmo a contratação de um seguro, um humano deveria ajudar na revisão do processo, que este não deveria ser executado 100% de forma automatizada.”

Redes Sociais e Análise de Perfil 

“O parágrafo 4º do artigo 7 da LGPD fala que dados manifestamente públicos – como redes sociais públicas – têm mais permissividade para o tratamento de dados por empresas. Na época de Trump, a análise para o visto exigia as redes sociais do interessado e alertava que elas seriam consultadas para a concessão ou não do visto. Algumas empresas e seguradoras no exterior já revelaram que consultam as redes sociais dos seus segurados para coleta de dados e informações.” 

Discriminação Indireta  

“Em processos de recrutamento e seleção, há uma preocupação cada vez maior com a equidade. Simultaneamente, cresce o uso de automatização nos processos de recrutamento, o que pode levar a alguns vieses.” 

“No meu livro cito o exemplo de uma empresa que chegou à conclusão de que, se contratasse funcionários que morassem perto do local de trabalho, o turn over seria mais baixo.  Porém, ao ativar esse filtro no algoritmo, ela restringiu a vaga a pessoas que eram daquela região. Ou seja, não recebia candidatos de uma determinada etnia por não morarem lá.” 

“Isso é o que chamamos de discriminação indireta, quando você usa um atributo aparentemente neutro, mas que traz um resultado desproporcional para membros de uma categoria protegida contra a discriminação.”

Código de boas práticas do setor 

“Existe uma tendência de se criar códigos de boas práticas do setor de seguros, há uma expectativa de que a Susep torne isso setorial. O mercado de seguros está passando por grandes transformações: de um lado as empresas tradicionais têm uma base grande de clientes, mas são menos propensas a riscos. De outro as insurtechs, que trazem uma visão muito boa do uso da tecnologia, aceitam mais o risco, mas também trafegam em um mercado muito regulamentado.” 

Recomendações  

“Acredito que algumas balizas no setor irão minimizar os aspectos negativos do uso da tecnologia.”

“Aumentar a transparência e a prestação de contas por parte do agente segurador, que deve revelar quais dados são coletados e tratados e para qual finalidade é uma boa prática a ser implementada.” 

“Muito se fala também da necessidade de registro do processo de treinamento do algoritmo. Assim, em caso de eventual auditoria, será possível exigir uma adaptação razoável para eliminar eventuais vieses discriminatórios indiretos como os relatados anteriormente.” 

“Igualmente importante é o treinamento dos colaboradores em relação à ética e privacidade e a conscientização dos consumidores em relação aos seus direitos.” 

“Por fim, deve-se aprimorar os canais de reclamação disponíveis ao consumidor.” 

Texto: Monica Miglio Pedrosa 

Foto: divulgação

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