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Meu caminho até a cadeira número 1

A trajetória pessoal e profissional de uma das primeiras executivas negras a alcançar a posição de CEO no Brasil

Ideias centrais: 

1 – Rachel Maia cursou Ciências Contábeis no atual Centro Universitário das Faculdades Unidas (FMU) do campus Liberdade. Para ela era um problema, porque queria muito voar, ser comissária de bordo. O pai insistiu no diploma universitário. E ali estava o alicerce de sua carreira profissional. 

2 – Um dos maiores orgulhos de Rachel é o Projeto Capacita-me, criado em 2017, cujo objetivo é capacitar pessoas por intermédio de cursos. Segundo ela, por meio da educação, podemos criar uma sociedade mais justa, um país melhor. 

3 – Sensibilidade e ação multitarefa são tidas como próprias das mulheres. Mas em 2019, apenas 13% de mulheres ocupavam a vaga de presidente nas empresas brasileiras, sendo de 1% a representatividade de mulheres negras neste grupo. 

4 – Como estimular a compra de joias em tempo de crise? Humanizando a marca. Logo que expôs a ideia a seus superiores, Rachel não foi compreendida. O presidente global não dava entrevistas, o nacional se escondia. Então, ela começou a aparecer, fazer palestras. E deu certo. Virou case internacional. 

5 – Rachel Maia: ”Sonho com o dia em que encontrarei CEOs, executivas, presidentes etc., que sejam mulheres negras, que ralaram muito para chegar onde estão, mas que chegaram lá!”. Yes, we can. 

Sobre a autora: 

Rachel Mais é uma das executivas de maior prestígio no Brasil e no exterior. Caçula de sete irmãos, cresceu no extremo sul da cidade de São Paulo e se especializou em cursos dentro e fora do país, construindo uma carreira bem-sucedida em importantes empresas globais. 

Introdução 

Como mulher de pele preta ao atuar na posição de chief executive officer (CEO), representei 0,4% no universo corporativo de empresas globais no Brasil. Foram meus sonhos que me trouxeram até aqui. Planejei e pratiquei muito a resiliência para concretizá-los. E tenho trilhado caminhos desafiadores. Perdi a conta do número de vezes que me olharam atravessado por ocupar um espaço onde predominava o padrão de pessoas brancas. 

Já fui questionada por estar em uma mesa rodeada de CEOs globais, homens, em sua grande maioria brancos. Já me disseram “o trabalho foi muito bem executado, nem parece de uma mulher”, como se fosse um elogio. Mas a verdade inquestionável é que cheguei a esse universo corporativo e me sentei na cadeira de CEO pelas minhas qualificações como mulher de pele preta e de origem familiar bem humilde. Tenho o sangue dessa família correndo nas veias e não vou negar. Aliás, não quero negar. 

Escrevo esta obra para todas as pessoas. Acredito na humanidade, na diversidade deste mundo, que deve se tornar mais inclusivo, na diversidade deste mundo, que deve se tornar mais inclusivo, no sentido mais amplo da palavra. Acredito na complexidade e na força das mulheres. E, como mulher, executiva, negra, crente em Deus e criada na periferia da zona sul de São Paulo, me coloco nestas próximas páginas de maneira absolutamente genuína e diversa. Diversidade que também a vida deve ter – e muito além da cor da minha pele. 

GOSTAR DAS PESSOAS É ESSENCIAL 

Acho que minha memória afetiva mais antiga vem das festas da casa da minha avó materna, dona Celina Maria. Imagine: ela teve nove filhos, e minha família é festeira. Estou falando de Natal, Páscoa, aniversários e Ano-Novo, mais de quarenta anos atrás, em uma casa cheia de pessoas falando alto e comendo hortaliças, como couve e cheiro-verde, colhidas na pequena horta do quintal. Galinhas e porcos eram criados no fundo do terreno, nos cercadinhos feitos com capricho por meu pai e cuidados por minha mãe. Tudo isso acontecia no bairro de Jordanópolis, no extremo sul da cidade de São Paulo, sentido Parelheiros.  

Ainda sinto a felicidade daquela menininha que eu era, me preparando para as festas. Éramos vizinhos de muro da minha avó. Do outro lado, a vizinha era a minha tia Custódia, irmã do meu pai, Antônio. Ou seja, metade do quarteirão fazia parte da família. Todo mundo que chegava de Minas Gerais, de onde vieram meus pais, de certo modo se estabeleceu nas redondezas. Assim, acabou sendo natural que as festas reunissem a grande família. Tudo era divertido. Funcionava naquele velho esquema do “cada um leva um prato e algumas bebidas”. 

Então, ao olhar com atenção para trás, posso ver de onde surgiu a semente da Rachel Maia que me tornei hoje. Levei para a vida aquele aprendizado da Rachel Maia que me tornei hoje. Levei para a vida aquele aprendizado todo. Não é à toa que acredito nas pessoas, no material humano e na velha máxima de que a união faz a força – afinal, #juntossomosmaisfortes.  

Não existe problema algum em se arriscar, desde que você tenha consciência de que pode falhar – e que está tudo bem se isso acontecer. O risco faz parte do processo evolutivo. Digo mais, falhar é fundamental. Quem não se arrisca não falha. E quem não falha não conhece o sabor do verdadeiro sucesso. O erro faz parte da formação de um profissional. O aprendizado está em todos os aspectos da vida, inclusive nas falhas. Ainda falando sobre inspiração, procrastinar é algo que pode afundar um bom projeto – e levar junto o engajamento de um time. Quando se chega a uma boa solução, é importante agir. Claro, planejamento é necessário, mas o ato de adiar, de deixar para depois, especialmente neste tempo em que vivemos, é pedir para ser passado para trás, Hoje, tão essencial quanto ter boas ideias é colocá-las em prática de forma ágil. Assim, saímos na frente, conquistamos o mercado e ditamos as regras. 

Tenho esta caraterística que me traz grande satisfação: a de desenvolver pessoas. É uma de minhas competências que extrapolam o âmbito profissional. Em todas as empresas pelas quais passei, com raras exceções, nunca contratei alguém de fora para me substituir quando mudei de cargo ou quando deixei esses locais para outros desafios. As pessoas que se sentaram na cadeira que antes era minha são as que trabalhavam diretamente comigo, sob minha gestão. Tenho verdadeira paixão em detectar talentos diversos e desenvolvê-los. Curiosamente, esse é um dos maiores desafios no universo corporativo. 

Todavia, nossa maior responsabilidade, claro, eram os estudos. Morávamos muito perto da escola, a atual Emef João de Deus Cardoso de Mello, e a educação sempre foi algo muito presente em minha vida. Meus irmãos e eu estudamos lá até a antiga oitava série, hoje o nono ano do ensino fundamental). Conhecíamos muitas crianças do bairro e de regiões próximas, afinal como comentei no início deste livro, boa parte era parente nosso. Em quase todas as ruas da vizinhança, havia um(a) tio(a) ou comadre/compadre, o que atrapalhava quando queríamos cabular aula ou namorar escondido – mas, claro, sempre dávamos um jeitinho. Meu pai, seu Antônio, e minha mãe, dona Maria – mais conhecida como Preta – sempre nos incentivaram a estudar. Repetiam à exaustão. 

Meus pais nos exigiam esforço, dedicação e empenho. Ele é resiliente e disciplinado. Ela é guerreira e dedicada à família. Tenho em minha essência, ainda bem, muito dessas características. Nossas diferenças e semelhanças estão na maneira como levo a vida. Meu pai é muito introspectivo, é do longo prazo, do planejar. É estratégico e muito inteligente –além de bastante teimoso (alguns diriam obstinado). Aliás, já ouvi de alguns familiares que herdei a teimosia dele. Minha mãe é festeira, especialmente em relação a eventos com a família. 

Antes de entrar na faculdade, meu sonho era ser comissária de bordo. Meu pai, como trabalhava na Vasp, certamente teve boa parcela de responsabilidade nesse primeiro sonho profissional tão grande. Cheguei a tirar licença de voo pela Escola de Aviação Congonhas (Eacon). Sou comissária formada, ou melhor, de carteirinha. E que tempo de alegria! Quando tirei a licença, fui a Fernando de Noronha com uma amiga da turma. Imagine que fantástico! Como não pude viajar na adolescência por falta de dinheiro – ia apenas para Minas Gerais por causa das visitas anuais à família de meus pais –, essa foi a minha primeira viagem para mais longe. Foi a fase de minha vida em que comecei a descobrir o lado belo do Brasil, especialmente o Nordeste. Primeiro Recife e Fernando de Noronha; depois, o Carnaval em Salvador. 

Voltei cheia de ideias, imaginando que meu futuro fosse ser comissária de bordo. Mas meu pai, que me inspirou a entrar no ramo da aviação, um belo dia me disse: 

— Caboclinha, é assim que funciona, filha minha, enquanto estiver aqui dentro de casa, tem que estudar. Então, quero que você tenha um diploma. Primeiro você vai se formar em uma faculdade, e só depois vai fazer o que bem entender. 

Foi um estresse! Fiquei quase seis meses sem falar com ele, puta da vida, achando que ele estivesse se apropriando de meu sonho. No entanto, não era opcional. Meu pai sempre foi muito exigente com as questões que considerava essenciais na vida, e duas delas eram os estudos e a honestidade. Portanto, lá fui eu para a faculdade. Contrariadíssima, com a sensação de que o mundo estava contra mim. Um drama! Hoje, agradeço muito a meus pais. 

Comecei a cursar ciências contábeis no atual Centro Universitário das Faculdades Unidas (FMU) do campus Liberdade, que ficava localizado na rua Fagundes. O que no começo era um problema, porque eu queria muito voar, ser comissária se tornou uma das fases mais divertidas de minha vida. O destino prega mesmo suas peças. Como boa adolescente que descobria o mundo, passei a adorar a faculdade. Curtia a vida lindamente, sem grandes preocupações. O futuro, pra mim, ainda era uma coisa distante. Não pensava que, ali, já estava alicerçando a base de minha carreira profissional. 

Após as aulas, ficávamos jogando conversa fora enquanto comíamos frango frito e tomávamos cerveja. Minha turma era enorme, uma mistura grande de gêneros, etnias e nacionalidades também. Gostávamos de viajar, de estudar em minha casa e até mesmo almoçar. 

Antes da graduação, pedi a meus pais que me deixassem trabalhar. Iniciei, adolescente, como monitora de pré-escola na Emei Castro Alves, que ficava perto de casa. Logo depois, fiz estágio por dois anos no Banco do Brasil, na extinta Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (Cacex). Já na faculdade, ingressei em um escritório de contabilidade com meu irmão mais velho, Leo Jaime, cujos donos eram seus amigos. O Leo foi uma inspiração para me tornar contadora. Sempre o considerei o mais inteligente lá de casa. Fui atrás de oportunidade. Consegui uma vaga na 7-Eleven, rede de lojas de conveniência norte-americana. 

Trabalhando nessa rede de lojas norte-americana, senti também o peso de não saber falar inglês. Meu conhecimento da língua se limitava ao verbo to be, que tinha aprendido na escola. Além disso, sempre amei cantores de língua inglesa como Dionne Warwick, Phil Collins, Michael Jackson, Mariah Carey e não entendia nada de suas canções. 

Precisava viajar para fora a fim de dominar o inglês. O difícil foi convencer meu pai. Embora ele tivesse passado pelo Canadá a trabalho, não confiava em mandar sua filha caçula sozinha para a América do Norte. Disse a meu pai que eu precisava me preparar para o futuro, seguindo o exemplo que ele mesmo havia me transmitido. Por fim, acedeu. 

E lá fui eu para o Canadá, movida por minha ineficiência em falar inglês com o presidente de minha antiga empresa [7-Eleven]. Ao invés de me paralisar, minha frustração foi o que fez com que eu me movesse e virasse a página. 

Tudo muito lindo, tudo muito corajoso. Mas, na prática, lá estava eu, viajando para um país estranho, sabendo apenas o verbo to be. Foi uma saia justa atrás da outra. A bem da verdade, cheguei ao Canadá sem nem saber como chegar ao Canadá… Tinha uma passagem até Houston e, de lá, seguiria para Vancouver. De Vancouver, por fim, tomaria um voo local até Vancouver Island, que era onde ficava a Universidade de Victoria, na qual levaria um ano e meio para eu concluir minha total imersão na língua inglesa. 

Quando voltei do Canadá, com o inglês na ponta da língua, não tive dúvidas: montei um curso desse idioma para jovens na paróquia Bom pastor, que ficava perto de casa e a qual frequentava. Iniciei meus ensinamentos com a tradução de uma música que amo de Phil Collins, trilha sonora do filme Tarzan, “You’ll Be in My Heart”. Poder compartilhar aquilo que havia aprendido foi minha pequena grande conquista pós-Vancouver. 

Quanto mais o tempo passa, mais nossas manias, nossas personalidades vão se moldando, demandando nosso próprio espaço. Meus pais foram muito acolhedores, mas, assim que arrumei emprego, fui procurar meu canto. Meu primeiro apartamento foi no condomínio Forest Hills Park, no Parque Residencial Júlia, também na zona sul de São Paulo, um bairro onde sempre quis morar. 

Apesar de ser mais parecida com meu pai, essa atmosfera festeira vem de minha mãe. Minha Pretinha me fez tomar gosto por reunir as pessoas. Tornei-me agregadora graças à minha mãe, que plantou em mim essa semente. 

Procuro deixar bem claro que esse é meu jeito, quero transparência, quero que me vejam como sou – com minhas esquisitices e minhas qualidades. Quero olhar para as pessoas. Adoro tirar as paredes de alvenaria, pois prefiro um ambiente aberto, que transmita proximidade. Contudo, quando necessário, peço trocar por vidro. 

CAPACITE-SE E CRESÇA 

Ainda que seja agregadora e muito humana, tenho um lado exigente. E espero excelência das pessoas. Não gosto de receber um serviço “mais ou menos”. Tenho um problema enorme quando percebo alguém na equipe cuja entrega é mediana. Sabe aquela coisa preguiçosa, sem brilho, sem o menor comprometimento? E, muitas vezes, trata-se de uma característica da pessoa 

Só se conhece o trabalho do outro ensinando e avaliando, analisando e ensinando novamente. É responsabilidade do gestor reconhecer os talentos, bem como os limites de cada um. 

Antes de ser exigente com os profissionais com os quais eu trabalho, sou assim comigo mesma. Logo que voltei do Canadá, comecei a procurar um novo posicionamento no mercado e, ao mesmo tempo, cursos de liderança e de negócios que pudesse fazer em instituições reconhecidas da cidade, como Universidade de São Paulo (USP) e Fundação Getúlio Vargas (FGV). Meus interesses eram nas indústrias farmacêutica e automobilística. Foquei esses ramos e acabei me tornando gerente financeira da Novartis, grupo farmacêutico suíço fundado em 1996 pela fusão da Ciba-Geigy com a Sandoz, em que trabalhei por quatro anos. 

Um de meus maiores orgulhos é o projeto Capacita-me, criado em 2017 e colocado em prática em 2018, cujo objetivo é capacitar pessoas por intermédio de cursos. Afinal, por meio da educação, podemos criar uma sociedade mais justa, um país melhor e, consequentemente, um mundo melhor. A educação é a base de tudo; em que se constroem os alicerces que fundamentam um caráter, uma carreira, uma vida. Para formar as turmas, buscamos pessoas que desejam crescer no âmbito profissional e pessoal, mas que não recebem oportunidade. Gosto de resumir o projeto em uma equação: Capacita-me = educação + empregabilidade

Ao sair do ramo farmacêutico, fui passar um tempo em Miami com um de meus irmãos, que se tornou piloto de avião. Continuei atrás de oportunidades, de conhecimento. Mas não foi fácil, pelo contrário. Para fazer bons cursos é preciso investimento, e minhas reservas estavam se esgotando. 

Não pensei duas vezes: fui trabalhar como manicure e depiladora em um salão. Uma vez, dei uma queimadinha nas costas de um cliente – daqueles acidentes que acontecem -, e ele quase abriu um processo contra mim (estávamos na “América”, afinal). Todavia, consegui contornar a situação. 

Também voltei a fazer faxina, sem nenhum problema. Já que, com a grana desse serviço, complementaria o que faltava para pagar os estudos em Miami. Mesmo já tendo me sentado na cadeira de liderança, ter voltado a fazer limpeza na casa de outras pessoas nunca me incomodou. 

CARGOS MAIS ALTOS: EXECUTIVA 

Era o ano 2000, e senti que era o momento de retornar ao meu país. Ao mesmo tempo, soube que Paloma Picasso, filha caçula do pintor, estaria no Brasil, participando da inauguração da flagship da Tiffany & Co., uma das joalherias mais tradicionais do mundo, na Faria Lima. Juntei minhas coisas, fiz as malas e fui vê-la em São Paulo. 

Um tempo depois, fui abordada por um headhunter; uma joalheria procurava trazer um pouco de diversidade no meio dos candidatos apresentados à matriz. O pré-requisito era ter o domínio da língua inglesa. Não era na área automobilística nem na farmacêutica, que eram meu foco, mas, como não estava empregada no momento, fui encontrá-los. Mesmo sendo uma grande admiradora do trabalho de Paloma como designer da Tiffany desde 1980, não era meu objetivo entrar para o mundo das joias, o mercado de luxo. 

Entretanto, por meio daqueles caminhos que só Deus conhece, entre mim e os seis candidatos (todos homens), fui a escolhida e aceitei o cargo. Ainda assim, tinha certeza de que não ficaria mais de dois anos na empresa. Contudo, as coisas começaram a andar com velocidade e, por fim, passei a responder pelas áreas financeira, de RH e de operações. Fui promovida a CFO do Brasil e, quando me dei conta, os dois anos na Tiffany se tornaram sete e meio – e o varejo de luxo corria em minhas veias. 

Muitas das características mencionadas ao longo do que escrevi até agora, como sensibilidade e ação multitarefa, são tidas como próprias das mulheres. No entanto, como citei anteriormente e é importante reforçar, em 2019 apenas 13% de mulheres ocupavam a vaga de presidente nas empresas brasileiras, sendo de 1% a representatividade de mulheres negras neste grupo. Então, garanto uma coisa: quando nós compusermos cerca de 30% dessas cadeiras, ah, ninguém vai segurar a mulherada! Não será ainda o ideal, claro, mas mostraremos a que viemos. 

Pois bem, logo depois da festa de aniversário, de volta para São Paulo, estranhava ser meados de fevereiro e minha menstruação estar atrasada. Fiz um teste de farmácia. 

Positivo. 

Fiz outro teste. 

Positivo. 

Senti um misto de felicidade, de surpresa, e me perguntava “Como vou contar para meu pai? Ferrou!”. Não estava namorando, mas adorava beijar na boca. Isso deixa a vida mais gostosa, mais leve. Esse caso foi mais que um beijo, com um grande amigo meu que tenho desde a faculdade, o Waldo. 

Então, havia o seu Antônio. Contar para meu pai foi o mais difícil. Ele é reservado e bastante conservador. Com as filhas, mais ainda. Ele falou algo muito forte: “Filha, você sabe que está me dando uma punhalada pelas costas. Mas saiba que sempre estarei com você, em qualquer decisão que tomar na vida.” 

Por fim, o fato é que voltei a trabalhar vinte dias depois que a Sarah Maria nasceu. Sei que muitas mães vão me julgar por essa escolha, mas senti que precisava fazer isso. Havia sido contratada para conquistar o sucesso da marca. Então, decidi voltar. A vida é feita de escolhas. Certas ou erradas, são nossas escolhas. 

Particularmente, com minha maneira de levar a vida, não tenho a capacidade de dividir tão fortemente o profissional do pessoal. E Sarah Maria me deu esta primeira percepção: a de que tudo é dinâmico e que não dá para “virar a chavinha”, me transformar na Rachel de casa e me isolar de tudo o que faço fora dela. A Rachel mãe está em mim o tempo todo, assim como a Rachel profissional. 

Vou dar um exemplo bem claro do que estou falando. Inúmeras vezes, pedi para que levassem minha filha ao escritório. Justamente por saber que não conseguiria sair antes das dez da noite e por querer vê-la antes que dormisse. A babá e Sarah então chegavam, e minha filha espalhava brinquedos por todos os cantos. Eu ficava abraçando e beijando a pequena, e pedia uma pizza. Sempre voltava para casa com a Sarah dormindo em meus braços. 

Desde muito nova, compreendi que uma mulher negra não teria as mesmas chances de uma mulher branca ao longo da vida, por exemplo, a de se casar. E, como mencionei em outra passagem, além de minha percepção, há dados estatísticos que comprovam isso. Hoje, sinto muita segurança para tratar desse assunto, para expor esse sentimento, mas era assim: quando eu saía para um baile, chegava um momento em que todos iam para a pista de dança e eu não era convidada para dançar por nenhum dos meninos. E sabe o que eu fazia? Dançava sozinha! Dançava com minhas amigas, me divertia. Geralmente, éramos eu e a Nite, minha parceira de balada. E Nite pode também testemunhar o fato de que ninguém “chegava” em nós. 

Não tenho como falar de minha trajetória sem me colocar como mulher. Por isso, volta e meia, esse tópico aparece naturalmente neste livro. Ao olhar para trás, vejo que minha família já era empoderada, mesmo que não usássemos esse termo. Nenhuma mulher de minha família jamais aceitou ser considerada inferior a um homem. Além disso, contei sobre a predominância masculina nos cargos mais altos das empresas. 

Durante esses anos, aprendi que é preciso sempre ter pulso firme e não embarcar na onda de ficar “cinzinha”. Explico: querem você apagada, de terninho cinza, sem mostrar seu estilo e quem realmente é. Eu gosto do diverso, eu gosto é de cores.  

Em um país economicamente em crise, como disseminar o pensamento de que é legal comprar jóias? Humanizando a marca. Logo que expus essa ideia a meus superiores, eles ficaram meio perdidos. O presidente global não dava entrevista, o presidente das Américas não se mostrava. Havia um paradigma para quebrar. Acreditava que se colocasse meu rosto e destaque daria à marca uma credibilidade maior. Os consumidores teriam alguém em quem confiar – ou para reclamar, o que fosse. Então, meti as caras: dei entrevistas, comecei a aparecer, a fazer palestras. E deu certo. Aquele “próximo passo” aconteceu. A proposta foi tão bem-sucedida que, nos encontros com os presidentes do mundo todo, eu era apontada como um caso de sucesso. 

Nesse meio-tempo, no fim de 2017, fui convidada para o programa Encontro com Fátima Bernardes. Ela me perguntou como eu estava lidando com o fato de me tornar conhecida. E respondi: “Eu não estou lidando tão diretamente. É um dia após o outro”. E era isso mesmo. Se planejasse com detalhes, jamais aconteceria tudo aquilo. Uma das pessoas que me ajudam nesse meio é a Paula Mageste, jornalista e diretora editorial, que faz parte de meu grupo de mulheres poderosas. 

Ser reconhecida abre portas, e um dos fatos mais marcantes provenientes disso foi meu encontro com Barack Obama. Poxa, afinal, sou a mensagem de que yes, we can! Ele esteve aqui em 2017, a convite do Valor Econômico, como palestrante do Fórum Cidadão Global. A palestra estava lotada. O ex-presidente dos Estados Unidos tem uma oratória e uma inteligência dignas de nota. 

Ao final do evento, doze pessoas foram convidadas a posar para uma foto com ele, eu era a única mulher negra. Chegamos a conversar, e ele me falou que sentia orgulho de mim. Pode parecer bobagem, mas naquele momento senti a união da comunidade. 

Reflito com Ele. Então, me dou conta de que fui intransigente em algum momento. Ou que sou perfeccionista demais. Vou fazendo um balanço das coisas. Por exemplo: há minha profissão, minha altura, meu jeito de levar a vida. Isso assusta. Penso que aquela pessoa, talvez, não  conseguisse levar tão bem o fato de eu ser como sou. Assim, as coisas vão clareando em minha cabeça. Deus tem ótimos argumentos. Não adianta discutir com Ele. 

Erika Jereissati é minha mentora da parte comercial. Logo que recebi o desafio de trabalhar com joias pela segunda vez, corri para ela. Perguntei: “O que devo fazer com esse universo novo que se abriu para mim?” E Erika: “Você precisa pensar e agir em pontos estratégicos, primeiro para que a marca passe a existir. Quando ela se estabelecer, a partir daí, você pensa nos locais onde vai abrir as lojas”. Para mim ficou claro, depois disso, que meu primeiro passo comercial deveria ser focar a marca. 

Em uma empresa existem muitos times. Muitas pessoas, muitas responsabilidades. A tendência é ir, executar e passar para o próximo assunto. Especialmente em empresas globais, há diretrizes, com regras e procedimentos, que precisam ser implementadas. No geral, quem não se adéqua salta fora. E, nesse caso, surge um questionamento: o que é, de fato, um funcionário se adequar ou você, como um bom líder, adequar as regras a um país e a uma realidade diferentes? Essa sensibilidade na implementação, na adaptação à realidade, demora. Formar uma equipe e colocá-la para funcionar não é tão simples. 

Ultimamente, tanto no espaço corporativo quanto no ambiente social, em especial nas redes sociais, qualquer tipo de discordância vem seguida de ares de inimizade. Às vezes, até de guerra. Parece que duas ideias diferentes não podem coabitar, o que é perigoso. 

Todavia, essa minha maneira de ver as coisas veio com maturidade, admito. E essa maturidade é um alívio. Até mesmo quando o caminho parece enveredar para algo pessoal, consigo separar e não guardar rancor ou nutrir aquela raiva que nos deixa amargos. Sempre acreditei que rancor dá câncer. Por isso, estou fora. 

O que direi agora pode parecer cruel: no mundo de hoje, de nada adiantará ser a pessoa mais genial do mundo se não souber se posicionar de maneira clara. 

Entendi isso há cinco anos. Compreendi que precisava melhorar a forma de me posicionar. Contratei uma fonoaudióloga, que também é professora de pilates. Sua abordagem tinha um ponto de vista linguístico, e ela vinha em casa dia sim, dia não, das seis às sete da manhã. Era o horário que eu tinha livre e, como sabia que seria importante, me forcei a acordar ainda mais cedo para estar pronta às seis em ponto. Começávamos fazendo um pouquinho de pilates e depois exercícios vocais, com técnicas para melhorar minha emissão de voz no cotidiano. Precisava falar melhor, ser mais altiva. E entender que há uma linhazinha no centro de minha cabeça me puxando para o universo. Minha postura perante o mundo mudou. 

Neste nosso papo (gosto de pensar que este livro é uma conversa entre nós), já disse que, por ser mulher, sou encarada com desconfiança e tenho que provar ainda mais do que sou capaz. Portanto, temos que levar em consideração que, infelizmente, só por não vestir terno e gravata, preciso me posicionar com ainda mais força. Além da competência, preciso ter minha retórica em dia para que possa explicar o que é necessário ao investidor do alto de meu salto e com minha saia colorida. Para captar sua atenção, criar uma conexão e demonstrar que sou tão boa, ou até melhor, do que o engravatado, trabalhei minha postura. 

Como é possível notar, muito do que sou hoje vem de meus pais. Foram incontáveis as ocasiões em que vi minha mãe lavando um monte de roupas no tanque, sem máquina, sem alvejantes ou produtos caros. Até mesmo a roupa ela tratava com carinho e amor, justamente por não poder fazer ou comprar novas o tempo todo. Elas precisavam durar. Quando uma filha crescia, passava a roupa para outra. 

Lembrete 

Um dos meus maiores sonhos, agora que estou terminando de escrever estas memórias, é o de que este livro se torne obsoleto. De que possa estar, um dia, em uma daquelas prateleiras de biblioteca sobre algum cenário histórico que não existe mais. Explico: só me permiti escrever tudo o que vivi até aqui depois de tanto ouvir que tenho uma história “extraordinária”. 

Vamos ao dicionário: nele está registrado que o significado de extraordinário é algo excepcional; que não é do costume geral; raro. Justo eu, que sempre me considerei “uma pessoa comum, uma filha de Deus”, como diz a canção de Rita Lee. E, sabe, sonho com o dia em que encontrarei CEOs, executivas, presidentes etc. que sejam mulheres negras, que ralaram muito para chegar aonde estão, mas que chegaram lá! 

APÊNDICE 

Decidi deixar aqui um resumo da ópera para quem quiser consultar com mais facilidade alguns tópicos relacionados àquilo que relatei.  

Agregar pessoas 

  • O humano me interessa. A humanidade e o olhar para o próximo são essenciais para mim. 
  • Ninguém se faz sozinho. Ninguém consegue vencer uma batalha sem seus aliados. O sucesso em uma posição de direção, de chefia ou de coordenação é bastante ligado a quem você escolhe para estar ao seu lado. 

Respeitar o diferente 

  • A diferença é vital para o negócio. Se me cercasse apenas de pessoas que pensam ou que são como eu, ou que tiveram a mesma formação que eu, estaria no caminho do fracasso. 
  • Partindo do princípio da diversidade no local de trabalho, escuto todos. Preciso de outros olhares. Tenho convicção de que muito do que dá certo vem do conjunto de ideias e olhares ao meu redor. 

Chegar perto 

  • Não basta ser bom presidente e saber dos números, você deve ter inteligência emocional para perceber e sentir seu entorno. 
  • Sempre que posso vou a happy hours com as equipes, organizamos cafés da manhã de integração e celebramos nossas conquistas. 

Organização é um caminho para o sucesso 

  • É importante ter organização para alcançar objetivos. Sou a louca do checklist. Cabeça bagunçada é igual a uma gaveta em desordem: não achamos nada e perdemos muito tempo procurando. 
  • Faço meu check list três vezes ao dia: de manhã, com os objetivos do dia; durante a tarde para ver se não estou me esquecendo de nada; e no fim do dia, para analisar o andamento de tudo o que estava planejado. 

Não dá para prever tudo o tempo todo 

  1. Relaxe! Mesmo com seu checklist, não dá para prever tudo nem para seguir o planejamento à risca. 
  • Coloque na cabeça: se não deu para cumprir algo hoje, remaneje e faça da melhor maneira possível depois. Afinal, a pressa passa e a porcaria fica.  

Tudo bem ter dúvidas 

  • Não existe fórmula de sucesso. Ter dúvidas em relação a algum projeto ou a como implementar algo é absolutamente normal. 
  • Na dúvida, consulte seus pares, consulte mentores, leia sobre o que já foi feito no ramo. E só depois tome uma decisão. 

Resenha: Rogério H. Jönck 

Fotos: divulgação

Ficha técnica: 

Título: Meu caminho até a cadeira número 1 

Autora: Rachel Maia 

Primeira edição: GloboLivros 

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