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Capital e ideologia

Capital e Ideologia - Thomas Piketty - Experience Club

Ideias centrais:

1 – Em sua forma mais simples, as sociedades ternárias são compostas de três grupos distintos, com cada um deles cumprindo funções essenciais a serviço do conjunto da comunidade: o clero, a nobreza e o terceiro estado.

2 – Se considerarmos a França em seu conjunto, constata-se que a participação do centésimo superior da distribuição (o 1% mais rico) no total das propriedades privadas era de 45% em 1800-1810 e beirava os 55% em 1900-1910.

3 – Durante o processo de abolição, os donos de escravos tiveram direito, no caso britânico, a uma compensação integral pelo prejuízo como proprietários, ou seja, a título de privação de seu direito de propriedade. Para os escravos? Nada.

4 – Entre países e regiões com maiores índices de desigualdade, neste início do século XXI, nos deparamos com os países caracterizados por marcante herança em termos de desigualdades estatutárias e de discriminações raciais, coloniais e escravocratas. Sobra para o nosso lado.

5 – A solução é organizar a globalização de forma diferente, substituindo os atuais acordos comerciais por tratados mais ambiciosos em termos de desenvolvimento, incluindo objetivos passíveis de verificação (impostos, emissões de carbono) e processos de deliberação transnacionais.

Sobre o autor:

Thomas Piketty leciona na École d’Économie de Paris e é diretor na École des Hautes Études en Sciences Sociales na França. É autor de O capital no século XXI, traduzido para mais de 40 línguas e com mais de 2,5 milhões de exemplares vendidos.

Introdução

Toda sociedade humana precisa justificar suas desigualdades; tem de encontrar motivos para a sua existência ou o edifício político e social como um todo corre o risco de desabar. Desse modo, toda época produz um conjunto de discursos e ideologias contraditórios que visam legitimar a desigualdade tal como existe ou deveria existir e descrever as regras econômicas, sociais e políticas que permitem estruturar o todo. Desse confronto, a um só tempo intelectual, institucional e político, costumam emergir uma ou várias narrativas dominantes, nas quais os regimes desigualitários vigentes se apoiam.

Nas sociedades contemporâneas domina, é notório, a narrativa proprietarista, empreendedorista e meritocrática:  a desigualdade moderna é justa, uma vez que decorre de um processo livremente escolhido, em que todos têm as mesmas propriedades de aceder ao mercado e à propriedade e em que todos se beneficiam naturalmente da acumulação dos mais ricos, os quais são também os mais empreendedores, os mais merecedores e os mais úteis. Estaríamos, assim, nos antípodas da desigualdade das sociedades antigas, fundamentadas em disparidades estatutárias rígidas, arbitrárias e muitas vezes despóticas.

O problema é que essa grande narrativa proprietarista e meritocrática – que conheceu um primeiro momento de glória no século XIX, após a derrocada das sociedades de ordens de Antigo Regime, e uma reformulação radical e de aspiração mundial a partir do final do século XX, com a queda do comunismo soviético e o triunfo do hipercapitalismo – tem se mostrado cada vez mais frágil. Ela conduz a contradições, que decerto assumem formas muito diferentes na Europa e nos Estados Unidos, na Índia e no Brasil, na China e na África do Sul, na Venezuela e no Oriente Médio. Todavia, ocorre que essas trajetórias distintas, nascidas de histórias específicas e, em parte, conectadas entre si, estão ligadas de forma cada vez mais estreita neste início do século XXI. Somente uma perspectiva transnacional permite compreender melhor tais fragilidades e considerar a reconstrução de uma narrativa alternativa.

Foi a Primeira Guerra Mundial que principiou o movimento de destruição e subsequente redefinição comercial e financeira muito desigual em curso durante a “Belle Époque” (1880-1914), uma  época que só se mostrou “bela” em comparação à explosão de violência que a sucedeu e, na verdade, era bela sobretudo para os proprietários e, mais particularmente, para o homem branco proprietário. Se não transformarmos profundamente o atual sistema econômico, de modo a torná-lo menos desigualitário, mais equitativo e sustentável tanto entre os países quanto dentro deles, é possível que muito em breve o “populismo” xenófobo e suas possíveis vitórias eleitorais deem início ao movimento de destruição hipercapitalista e digital dos anos 1990-2020.

Socialismo participativo

Uma conclusão importante dessa análise histórica: foi a luta pela igualdade e pela educação, e não a sacralização da propriedade, da estabilidade e da desigualdade, que permitiu o desenvolvimento econômico e o progresso humano. A nova narrativa hiperdesigualitária que se impôs a partir dos anos 1980-1990 é, em parte, produto da história e do desastre comunista. Mas também é fruto da ignorância e da divisão dos saberes e contribuiu largamente para alimentar o fatalismo e os atuais desvios identitários. Retomando-se o fio da história por uma perspectiva pluridisciplinar, é possível chegar a uma narrativa mais equilibrada e traçar os contornos de um novo socialismo participativo para o século XXI; ou seja, com novo horizonte igualitário de aspiração universal, uma nova ideologia da igualdade, da propriedade social, da educação e da repartição dos saberes e poderes mais otimista em relação à natureza humana e também mais precisa e convincente do que as narrativas anteriores, por ser bem mais ancorada nas lições da história global.

O que é uma ideologia?

Neste livro tenta-se empregar a noção de ideologia de modo positivo e construtivo, isto é, enquanto um conjunto de ideias e discursos a priori plausíveis, que visam descrever o modo como a sociedade deve se estruturar. A ideologia será considerada em suas dimensões a um só tempo sociais, econômicas e políticas. Uma ideologia é uma tentativa mais ou menos coerente de trazer respostas a um conjunto de questões extremamente amplas envolvendo a organização desejável ou ideal da sociedade. Desnecessário dizer, dada a complexidade das questões colocadas, que nenhuma ideologia jamais contará com a adesão plena e inteira de todos: o conflito e a discordância ideológica são inerentes à própria ideologia.

Poder e propriedade

Na maioria das sociedades antigas, a questão do regime político e a do regime de propriedade – ou, em outros termos, a questão do poder sobre os indivíduos e a do poder sobre as coisas (isto é,os objetos de posse, que podem ser pessoas no caso da escravidão e que, seja quem for, têm um aspecto determinante nas relações de poder entre as pessoas – são ligadas de maneira direta e imediata.

O mesmo se dá, embora de modo mais sutil, nas sociedades ternárias, ou “trifuncionais” (isto é, que são divididas em três classes sociais: uma classe clerical e religiosa, uma classe nobre e guerreira e uma classe plebeia e laboriosa). Nessa forma histórica, observada na maioria das civilizações pré-modernas, as duas classes dominantes são indissociavelmente classes dirigentes dotadas de poderes soberanos (segurança e justiça) e classes possuidoras. Desse modo, o Landlord foi por vários séculos tanto o senhor das pessoas que viviam e trabalhavam na terra quanto da terra em si.

Já as sociedades de proprietários, que florescem sobretudo na Europa no século XIX, procuram, pelo contrário, separar estritamente a questão do direito de propriedade (tido como universal e disponível a todos) da questão do poder soberano (doravante monopólio do Estado centralizado).  

Desigualdade: origem

A desigualdade não é econômica ou tecnológica: é ideológica e política. Essa é, sem dúvida, a conclusão mais evidente da pesquisa histórica apresentada neste livro. Em outras palavras, o mercado e a concorrência, o lucro e o salário, o capital e a dívida, os trabalhadores qualificados e não qualificados, os nacionais e os estrangeiros, os paraísos fiscais e a competitividade não existem como tais. São construções sociais e históricas que dependem inteiramente dos sistemas jurídico, tributário, educacional e político que se escolhe instituir e das categorias que se opta por criar. Essas escolhas remetem, antes de mais nada, às representações que cada sociedade tem da justiça social e da economia justa e das relações de força político-ideológicas entre os diferentes grupos e discursos em questão. O ponto importante é que essas relações de força não são apenas materiais: são também, e sobretudo, intelectuais e ideológicas. Em outros termos, ideias e ideologias contam na história. Elas permitem permanentemente imaginar e estruturar mundos novos e sociedades diferentes. Múltiplas trajetórias são sempre possíveis.

Essa abordagem se distingue dos vários discursos conservadores que explicam a existência de fundamentos “naturais” para as desigualdades. Como seria de esperar, as elites das diferentes sociedades, em todas as épocas e em todas as latitudes, tendem com frequência a “naturalizar” as desigualdades, isto é, a tentar atribuir-lhes fundamentos naturais e objetivos, a explicar que as disparidades sociais vigentes são (como deve ser) do interesse dos mais pobres e do conjunto da sociedade e que, de qualquer forma, sua atual estrutura é a única concebível e não pode ser substancialmente alterada sem que ocorram novas tragédias. Já a experiência histórica demonstra o contrário: as desigualdades variam muitíssimo no tempo e no espaço, tanto em sua amplitude quanto em sua estrutura e, não raro, em circunstâncias e numa velocidade que os contemporâneos dificilmente poderiam ter previsto algumas décadas antes.

O estudo das diferentes trajetórias históricas e das inúmeras bifurcações inconclusas do passado é o melhor antídoto tanto para o conservadorismo elitista quanto para temporização revolucionária do grand soir [grande noite, em francês. Expressão para designar o triunfo da revolução marxista-socialista]. Essa temporização exime muitas vezes de se pensar o regime institucional e político efetivamente emancipador a ser aplicado no dia seguinte ao grand soir e, em geral, leva a se contar com um poder estatal a um só tempo hipertrofiado e indefinido, o que pode se revelar tão perigoso quanto a sacralização proprietarista que se pretende contrapor.

Fontes utilizadas

Este livro se apoia em dois grandes tipos de fontes históricas; de um lado, as fontes que permitem mensurar a evolução das desigualdades sob uma perspectiva histórica, comparativa e multidimensional (desigualdades de renda, salário, patrimônio, educação, gênero, idade, profissão, origem, religião, raça, status etc.); e, de outro, as fontes que possibilitam o estudo das transformações das ideologias, das crenças políticas e das representações das desigualdades e das instituições econômicas, sociais e políticas que as estruturam.

No que concerne às desigualdades, a obra se fundamenta principalmente nos dados reunidos no âmbito da World Inequality Database (WID.world). Esse projeto se apoia nos esforços combinados de mais de 100 pesquisadores cobrindo na atualidade mais de 80 países em todos os continentes. Ele reúne a maior base de dados hoje disponível sobre a evolução histórica das desigualdades de renda e patrimônio, tanto entre países quanto dentro deles. O projeto WID.world tem suas raízes em trabalhos históricos empreendidos no início dos anos 2000 com Anthony Atkinson e Emmanuel Saez, os quais, por sua vez., visavam generalizar e estender pesquisas iniciadas nos anos 1950 e 1970 por Simon Kuznets, Atkinson e Allan Harrison.

Também se recorre à literatura, que constitui uma das melhores fontes para ilustrar as mudanças nas representações das desigualdades. Em o Capital no século XXI utilizei principalmente o romance europeu clássico do século XIX, em especial textos de Balzac e Jane Austen, que oferecem um ponto de vista insubstituível sobre as sociedades de proprietários que prosperaram na França e no Reino Unido nos anos 1790-1830.

Progresso humano

Entremos, agora, no cerne da questão. O progresso humano existe, mas é frágil e a qualquer momento pode se estraçalhar nos desvios desigualitários e identitários do mundo. O progresso humano existe: para se convencer, basta observar a evolução da saúde e da educação no mundo ao longo dos dois últimos séculos. A expectativa de vida ao nascer passou de cerca de 26 anos em média no mundo em 1820 para 72 anos em 2020. No início do século XIX, a mortalidade infantil atingia cerca de 20% dos recém-nascidos do planeta em seu primeiro ano de vida, contra menos de 1% hoje em dia.

De modo geral, os reais progressos alcançados em termos de saúde, educação e poder aquisitivo acabam mascarando imensas desigualdades e fragilidades. Em 2018, a taxa de mortalidade infantil antes de 1 ano de idade era inferior a 0,1% nos países europeus, norte-americanos e asiáticos mais ricos, porém chegava a quase 10% nos países africanos mais pobres. A renda média mundial era de 1.000 euros, mas era de apenas 100-200 euros mensais per capita nos países mais pobres, ao passo que ultrapassava os 3.000-4.000 euros mensais nos países mais ricos.

Aprender com a história

De modo geral, ver-se-á neste livro que, para analisar as evoluções em curso no final do século XX e neste início do XXI e, principalmente, para tirar lições para o futuro, é preciso ressituar a história dos regimes e ideologias desigualitários sob uma perspectiva histórica e comparativa de longa duração. O regime desigualitário atual, que podemos qualificar de neoproprietarista, traz em si os vestígios de todos os regimes anteriores, só poderá ser analisado da forma correta se começarmos por examinar como as antigas sociedades trifuncionais (fundadas na estrutura ternária clero-nobreza-terceiro estado) se transformaram em sociedades de proprietários nos séculos XVIII e XIX e como essas últimas ruíram no decurso do século XX por força dos desafios comunistas e social-democratas, das guerras mundiais e das independências, que puseram fim a vários séculos de dominação colonial. Toda sociedade humana precisa dar sentido às suas próprias desigualdades e as justificações do passado,quando estudadas de perto, nem sempre são mais absurdas do que as do presente.

Social-democracia: origem nas ideias

Antes de tudo, é preciso salientar que as coalizões redistributivas de tipo social-democrata (no sentido mais amplo da termo) que se impuseram em meados do século XX tinham uma dimensão intelectual e ideológica. Em outras palavras, é principalmente no terreno das ideias que as lutas foram travadas e vencidas. Sem dúvida, foi essencial que essas coalizões também tenham se encarnado em partidos e eleições específicas, fosse num partido autêntica e explicitamente “social-democrata” – como SAP na Suécia ou o SPD na Alemanha que assumiram responsabilidades importantes a partir dos nos 1920-1930 – ou na forma do Labour Party no Reino Unido (que obteve maioria absoluta das cadeiras nas eleições históricas de 1945) , do Partido Democrata nos Estados Unidos (no poder de 1932 a 1952 sob Roosevelt e depois sob Truman) ou, ainda, na forma de diversas alianças social-comunistas na França (no poder em 1936 e em 1945) e em vários outros países.

 Entretanto, para além dessas formas específicas, o fato é que a verdadeira tomada do poder foi, acima de tudo, ideológica e intelectual.

Por outro lado, a partir dos anos 1980-2000, as diferentes dimensões da desigualdade social deixaram de estar alinhadas. A estrutura do conflito político corresponde ao que podemos descrever como um sistema “de elites múltiplas”: um partido ou coalizão atrai os votos dos mais escolarizados (a elite intelectual e cultural), ao passo que o outro partido ou coalizão angaria os votos dos patrimônios mais altos e, em certa medida, das rendas mais altas da elite mercantil e financeira. Entre as muitas dificuldades trazidas por esta situação, há claramente um forte risco de todas as pessoas que não possuem nem escolaridade, nem patrimônio, nem renda elevados se sentirem abandonadas diante de tal estrutura do conflito político.

Esta alentada obra é composta de quatro partes e 17 capítulos, que, a seguir, serão apresentados sucintamente.

Primeira parte: Os regimes desigualitários na história

O Capítulo 1 traz uma introdução geral ao estudo das sociedades ternárias (ou trifuncionais), isto é, das sociedades organizadas em torno de uma tripartição em três grupos funcionais (clero, nobreza e terceiro estado).

Texto ilustrativo:

“Em sua forma mais simples, as sociedades ternárias são compostas por três grupos sociais distintos, com cada um deles cumprindo funções essenciais a serviço do conjunto da comunidade e sendo indispensável para sua perpetuação: o clero, a nobreza e o terceiro estado. O clero é a classe religiosa e intelectual: é incumbida da direção espiritual da comunidade, de seus valores e de sua educação; dá sentido à sua história e ao seu devir e lhe fornece, para tanto, as normas e os referenciais intelectuais e morais necessários. A nobreza é a classe guerreira e militar: maneja as amas e traz segurança, proteção e estabilidade ao conjunto da sociedade; evita-se, assim, que a comunidade mergulhe no caos permanente e no banditismo generalizado. O terceiro estado é a classe plebeia e laboriosa; reúne o restante da sociedade, a começar pelos camponeses, artesãos e comerciantes; com seu trabalho, permite que o conjunto da comunidade se alimente, se vista e se reproduza.”

O Capítulo 2 analisa o caso das sociedades intelectuais e guerreiras europeias, baseadas numa forma de equilíbrio entre a legitimidade das elites intelectuais e guerreiras e formas específicas de propriedade e relações de poder.

Texto ilustrativo:

“Mas o discurso ternário se dirige também para as elites. Para o arcebispo Adalberon de Laon [França medieval], trata-se de convencer os reis e os nobres a governarem com sabedoria e moderação e seguirem, para tanto, os conselhos dos clérigos (ou seja, dos membros do clero secular e regular que, para além de suas funções  propriamente religiosas, com frequência cumprem junto aos príncipes várias outras tarefas  indispensáveis: letrados, escribas,emissários, contadores, médicos etc.) Adalberon descreve em um de seus textos uma estranha procissão em que o mundo funciona do avesso em que os camponeses usam uma coroa e são seguidos pelo rei, pelos guerreiros, monges e bispos, que caminham nus atrás do arado. A ideia é ilustrar o que poderia acontecer, caso o rei desse livre curso aos excessos dos guerreiros e decidisse acabar com a lógica do equilíbrio entre as três ordens, a única capaz de garantir a estabilidade necessária à sociedade.”

O Capítulo 3 estuda a invenção das sociedades de proprietários, principalmente através da cesura emblemática da Revolução Francesa, que procurou estabelecer uma separação radical entre o direito de propriedade (tido como disponível a todos) e os poderes soberanos (doravante monopólio do estado) e esbarrou na questão da desigualdade da propriedade e em sua persistência.

Texto ilustrativo:

“O grande ponto fraco da ideologia proprietarista é que os direitos de propriedade obtidos no passado apresentam, com frequência, sérios problemas de legitimidade. É o que acabamos de ver com a Revolução Francesa que transformou corveias em aluguéis sem se deparar com maiores lutas, e ainda tornaremos a ver essa dificuldade várias vezes, em especial na questão da escravatura e sua abolição nas colônias francesas e britânicas (onde se julgou indispensável indenizar os proprietários, e não os escravos), ou ainda nas privatizações pós-comunistas e nas pilhagens privadas de recursos naturais. De maneira mais geral, o problema é que, afora a questão das origens violentas ou ilegítimas das apropriações iniciais, desigualdades patrimoniais consideráveis, duradouras e amplamente arbitrárias tendem a se reconstituir de modo permanente nas modernas sociedades hipercapitalistas, assim como nas sociedades antigas.”

 O Capítulo 4 examina o desenvolvimento de uma sociedade de proprietários hiperdesigualitária na França do século XIX até a Primeira Guerra Mundial.

Texto ilustrativo:

“A conclusão que mais impressiona é a seguinte: a concentração da propriedade privada, que já era altíssima em 1800-1810, só um pouco menor que às vésperas da Revolução, não parou de crescer ao longo de todo o século XIX e até a Primeira Guerra Mundial. Se considerarmos a França em seu conjunto, constata-se que a participação do centésimo superior da distribuição (o 1% mais rico) no total das propriedades privadas de todo gênero era de cerca de 45% em 1800-1810 e beirava os 55% em 1900-1910. O caso de Paris é ainda mais espantoso: a participação do 1% mais rico era próxima de 50% em 1800-1810 e ultrapassava 65% às vésperas de 1914.”

O Capítulo 5 estuda as variantes europeias de transição entre lógicas trifuncionais e proprietaristas, focalizando sobretudo o caso do Reino Unido e da Suécia, o que permite ilustrar a multiplicidade de trajetórias possíveis, assim como a importância das mobilizações coletivas e das bifurcações político-ideológicas para a transformação dos regimes desigualitários.

Segunda Parte: As sociedades escravocratas e coloniais

O Capítulo 6 se dedica às sociedades escravocratas, que constituem a forma histórica mais extrema de regime desigualitário. Dedica-se mais atenção às abolições do século XIX e às formas de compensação ocasionadas por elas aos proprietários.

Texto ilustrativo:

“A lei da abolição aprovada pelo Parlamento britânico em1833 e aos poucos implementada entre 1833 e 1843 incluía, com efeito, uma indenização  para os donos de escravos. Não foi estabelecido, nessa abolição nem em nenhuma outra, qualquer tipo de indenização aos escravos pelos danos sofridos por eles e seus descendente,quer no sentido dos pesados danos físicos, quer pelo simples fato de terem trabalhado séculos a fio sem remuneração. Muito pelo contrário: como veremos, os ex-escravos, quando emancipados, foram obrigados a firmar contratos de trabalho de longo prazo relativamente rígidos e pouco vantajosos, fazendo com que na prática, e na quase totalidade dos casos, eles passassem por um longo regime de trabalho quase forçado após sua alforria oficial, com variações segundo as abolições consideradas. Em contrapartida, os donos de escravos tiveram direito, no caso britânico, a uma compensação integral pelo prejuízo sofrido como proprietários, a saber, a privação de seu direito de propriedade.”

O Capítulo 7 estuda a estrutura das desigualdades nas sociedades coloniais pós-escravocratas – menos extremas, sem dúvida, do que as das sociedades escravocratas, às quais sucederam, mas que também deixaram marcas profundas na estrutura da desigualdade contemporânea tanto entre os países como dentro deles.

Os Capítulos 8 e 9 examinam de que modo a transformação das sociedades trifuncionais extraeuropeias foi afetada pelo contato com as potências coloniais e proprietaristas europeias, primeiro focando o caso da Índia (onde as antigas divisões estatutárias deixaram marcas incomumente tenazes, em parte devido à sua rígida codificação por parte do colonizador britânico) e em seguida adotando uma perspectiva euro-asiática mais ampla (China, Japão e Irã).

Texto ilustrativo:

“Entretanto, os vários desmandos cometidos pela Companhia das Índias Orientais em solo indiano logo geraram escândalos retumbantes. A  partir dos anos 1770-1780, surgiram questionamentos no Parlamento britânico no sentido de endurecer a tutela da Coroa sobre a companhia. Esses pedidos eram expressos notadamente pelo filósofo conservador Edmund Burke, conhecido por suas duras Reflections on the French Revolution, publicadas em 1790. Burke insistia na necessidade de dar um basta na corrupção e nas brutalidades dos agentes da companhia e conseguiu fazer com que, ao final de um tumultuado processo, Warren Hastings (ex-dirigente da Companhia das Índias Orientais e governador-geral de Bengala) fosse condenado pela Câmara dos Comuns em 1787. No final, a Câmara dos Lordes decidiu absolver Hastings em 1795, mas as elites britânicas estavam cada vez mais convencidas de que o Parlamento deveria se envolver mais na colonização da Índia. Tornava-se cada vez mais claro que a missão civilizadora britânica tinha que ter por base um administração rigorosa e conhecimento sólido e que não dava mais para delegar a soberania e manutenção da ordem a um bando de ávidos mercadores e mercenários. Os administradores e os cientistas precisavam entrar em cena.”

Terceira Parte: A grande transformação do século XX

Esta parte contém quatro capítulos. O Capítulo 10 analisa a queda das sociedades de proprietários no século XX  em virtude das duas guerras mundiais e, da crise dos anos 1930, do desafio do comunismo e das independências e, mais ainda das mobilizações  coletivas e ideológicas (social-democratas e sindicais, principalmente) em gestação desde o final do século XX para refundar um regime desigualitário mais justo do que o proprietarismo.

Texto ilustrativo:

“A queda das sociedades de proprietários entre 1914 e 1945 pode ser analisada como a consequência de um triplo desafio: um desafio desigualitário interno das sociedades proprietárias europeias, que conduziu à emergência dos contradiscursos e, em seguida, dos contrarregimes comunistas e social-democratas no final do século XIX e ao longo da primeira metade do XX; um desafio desigualitário externo ligado ao questionamento da ordem colonial e aos movimentos independentistas, cada vez mais potentes nesse mesmo período; e, por fim, um desafio nacionalista e identitário que levou as potências europeias a uma concorrência cada vez mais exacerbada e, enfim, à sua autodestruição bélica e genocida entre 1914 e 1945. É a conjunção dessas três crises intelectuais profundas (surgimento do comunismo e do socialismo, crepúsculo do colonialismo, exacerbação do nacionalismo e do racialismo) e de trajetórias circunstanciais específicas que explica a radicalidade do questionamento e da transformação que observamos.”

O Capítulo 11 elenca as conquistas e os limites das sociedades social-democratas estabelecidas no fim da Segunda Guerra Mundial e, em especial, suas limitações para repensar as condições de uma propriedade justa, para enfrentar o desafio desigualitário no ensino superior e estender a questão da redistribuição em escala transnacional.

Texto ilustrativo:

“Na Alemanha, o SPD (Sozialdemoktatische Partei Deutschlands), o primeiro grande partido social-democrata da história em número de militantes, desde o final do século XIX, só ocupou o poder de modo intermitente a partir da Segunda Guerra Mundial. Todavia, sua influência na instauração do estado de bem-estar social alemão foi considerável, a tal ponto que o Partido Cristão Democrata (CDU), no poder sem interrupção de 1949 a 1966, adotou como doutrina oficial “a economia social de mercado”. Na prática, isso implica, em especial, o reconhecimento do papel central das garantias sociais e de uma certa divisão de poder entre acionistas e sindicatos. Se a isso acrescentarmos o fato de que o SPD abandonou em seu programa de Bad Godesberg de 1959 toda a referência às nacionalizações e ao marxismo, disso resulta uma certa convergência programática dos dois principais partidos alemães do pós-guerra. Uniram-se assim na busca de um novo modelo de desenvolvimento que permitisse reconstruir o país após o desastre do nazismo, e que podemos classificar como ‘social-democrata’.”

O Capitulo 12 examina as sociedades comunistas e pós-comunistas e suas variantes russa, chinesa e leste-europeia e a forma como o pós-comunismo contribuiu para alimentar os desvios desigualitários e identitários recentes.

Texto ilustrativo:

“As razões de tal fiasco [comunismo soviético] são inúmeras. Quando os bolchevistas tomam o poder em 1917, seus planos de ação estão longe de ser tão “científicos” quanto alegam. É claro que a propriedade privada  será abolida, ao menos no que diz respeito aos grandes meios de produção – aliás, que existem em menor número  na Rússia. Mas como  serão organizadas as novas relações de produção e de propriedade? O que será feito das pequenas unidades de produção e do setor comercial, e de transporte ou de agricultura? Por quais mecanismos serão tomadas as decisões e repartidas as riquezas no cerne do gigantesco aparelho do Estado e da planificação?  Por falta de resultados à altura das expectativas, foi preciso encontrar motivos e bodes expiatórios, ou seja, em essência, ideologias da traição e do complô capitalista. Foi assim que o regime se fechou em ciclos intermináveis de encarceramentos e expurgos, dos quais nunca saiu por completo até sua derrocada. É fácil anunciar a abolição da propriedade privada e do regime eleitoral burguês. O problema é que é mais complexo (e mais interessante) descrever com precisão as organizações alternativas. A tarefa não é impossível, mas exige aceitar a deliberação, a descentralização, os compromissos e os experimentos.”

O Capítulo 13 coloca em perspectiva o regime hipercapitalista desigualitário mundial, entre modernidade e arcaísmo, salientando sua incapacidade em avaliar a extensão das crises desigualitárias e ambientais que o minam.

Texto ilustrativo:

“Se analisarmos agora as regiões do mundo em que a desigualdade é maior, constatamos algo interessante: ela corresponde a diferentes tipos de regimes político-ideológicos (Gráfico 13.2). Entre s países e regiões com maior índices de desigualdade neste início do século XXI, nos deparamos, por um lado, com os países caracterizados por uma marcante herança em termos de desigualdades estatutárias e de discriminações raciais, coloniais e escravocratas. É o caso da África do Sul, que suprimiu o apartheid no início dos anos 1990, e do Brasil, o último país a ter abolido a escravidão, no final do século XIX. A dimensão racial e o passado escravocrata também podem contribuir para explicar o motivo de os Estados Unidos serem mais desigualitários que a Europa, e por que enfrentaram mais dificuldades para criar instituições do tipo social-democrata.”

Quarta parte: repensar as dimensões do conflito político

Ela é composta por quatro capítulos nos quais é analisada a evolução socioeconômica dos eleitorados dos diferentes partidos e movimentos políticos a partir de meados do século XX e as perspectivas de recomposições futuras.

O Capítulo 14 esmiúça as circunstâncias da formação histórica e, em seguida, do desaparecimento de uma coalizão eleitoral igualitária, isto é, fundada numa plataforma redistributiva convincente o bastante para congregar as classes populares de origens distintas, a começar pelo caso da França.

Por sua vez, o Capítulo 15 mostra que o processo de desagregação gentrificação-brahmanização da coalizão social-democrata do pós-guerra ocorreu também nos Estados unidos e no Reino Unido, o que sugere causas estruturais comuns.

O Capítulo 16 estende a análise para outras democracias eleitorais ocidentais, no leste Europeu, na Índia e no Brasil. Nele, estuda-se a formação, neste início do século XXI, de uma autêntica armadilha social-nativista. Ressalta-se o modo como os desvios identitários atuais são alimentados pela inexistência de uma plataforma igualitária e internacionalista forte o suficiente para lhe servir de contrapeso, ou, em outras palavras, a inexistência de um social-federalismo autêntico e credível.

Texto ilustrativo:

“Essa evolução é também assombrosa em nível regional. Nas regiões brasileiras mais pobres, em particular no Nordeste do país, os eleitores votam de forma cada vez mais consistente no PT, enquanto nas regiões mais ricas a situação progressivamente se inverte. Durante as eleições de 2014 e 2018, o Nordeste brasileiro continua a dar grande maioria de votos a Dilma Rousseff e Fernando Haddad, enquanto as regiões e as cidades do Sul (como São Paulo) rejeitam, de modo claro, o PT. Essa estrutura social e geográfica do voto é acompanhada de uma divisão racial bastante acentuada. A partir de 2006, constatamos que os eleitores que se declaram negros ou mestiços (ou seja, pouco mais da metade da população) votam muito mais fortemente no PT do que os que se descrevem como brancos, mesmo após levar em conta os efeitos das outras características socioeconômicas e individuais.”

O Capítulo 17 procura tirar lições das experiências relatadas nos capítulos e partes anteriores e apresentar os contornos de um possível socialismo participativo para o século XXI. Analisa-se, em especial, as formas que uma propriedade justa poderia assumir, com dois pilares principais: de um lado, uma efetiva repartição do poder e dos direitos de voto nas empresas, que possibilitasse a instauração da propriedade social  e ir além da cogestão e autogestão; de outro, um imposto fortemente progressivo sobre propriedade que permitisse financiar uma dotação de capital significativa para todo jovem adulto e implementar uma forma de propriedade temporária e de circulação permanente dos patrimônios.

Texto ilustrativo:

A fronteira justa: o federalismo social em escala global

“Tratemos agora do que, sem sombra de dúvida, constitui a mais delicada questão para definirmos a sociedade justa: a fronteira justa. A organização atual do mundo repousa em postulados, aos quais estamos tão acostumados que nos parecem por vezes imprescindíveis, mas que, na realidade, correspondem a um regime político-ideológico bastante específico. Consideramos, por um lado, que as relações entre os países devem ser organizadas com base na mais absoluta livre circulação dos bens, dos serviços e dos capitais, e que os países que recusarem estas regras teriam que ser excluídos do mundo civilizado. Por outro lado, consideramos que as escolhas políticas dentro dos países, sobretudo em termos de sistema tributário, social ou jurídico, só dizem respeito aos países e devem ser objetos de uma soberania estritamente nacional. O problema é que esses postulados levam de imediato a contradições, cuja magnitude só aumentou ao longo das últimas décadas, e que ameaçam explodir o curso normal da globalização. A solução é organizar essa globalização de forma diferente, ou seja, substituindo os atuais acordos comerciais por tratados  bem mais ambiciosos visando a promoção de um modelo de desenvolvimento equilibrado e duradouro, incluindo objetivos comuns passíveis de verificação (sobretudo quanto ao imposto justo e às emissões de carbono) e processos de deliberação democrática adequados (sob a forma de assembleias transnacionais).”

Conclusão

A história do século XX e do desastre comunista hoje nos obriga a um estudo minucioso dos regimes desigualitários e de suas justificativas e principalmente dos dispositivos institucionais e dos modos de organização socioeconômica que possibilitaram de fato a emancipação humana e social. A história da desigualdade não pode ser reduzida ao eterno confronto entre os opressores do povo e os seus orgulhosos defensores. Ela se apoia, de ambos os lados, em construções intelectuais e institucionais sofisticadas, que nem sempre são isentas de hipocrisia e do desejo de perpetuação por parte dos grupos dominantes,embora mereçam um exame atento. Ao contrário da luta de classes, a luta das ideologias se fundamenta no compartilhamento de conhecimento e experiências, no respeito ao outro, na deliberação e na democracia. Ninguém jamais deterá a verdade absoluta no que se refere á propriedade justa, à fronteira justa, à democracia justa, ao imposto justo ou à educação justa. A história das sociedades humanas pode ser vista como a busca pela justiça. Apenas a comparação meticulosa das experiências históricas e pessoais e a deliberação mais  ampla podem permitir progressos nessa direção.

Resenha: Rogério H. Jönck

Imagens: Reprodução

Ficha técnica:

Título: Capital e ideologia

Título original: Capital et idéologie

Autor: Thomas Piketty

Primeira edição: Editora Intrínseca

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